A heterogeneidade política
Eduardo J. Viola
Sociólogo, professor do Programa de Mestrado em Sociologia'Política da Universidade Federal de Santa Catarina
- Sintetizando as correntes existentes no movimento ecologista mundial e na teoria política ecologista, podemos diferenciar quatro posições: ecologistas fundamentalistas, ecologistas realistas, ecossocialistas e eco-capitalistas.
A posição ecologista fundamentalista, de herança anarquista-niilista, é de horizonte bastante pessimista. Acredita na construção de uma sociedade ecologista alternativa na periferia da sociedade materialista, desconsiderando as possibilidades de transformação global da sociedade.
- Acredita irreversível a lógica predatório extremista do mundo contemporâneo, constituindo uma ruptura fundamental com a tradição ocidental judaico-cristã: já que o futuro é inviável (não há Terra nem Paraíso), resta apenas esperar o fim vivendo de modo coerente com os princípios.
Os ecologistas realistas apostam na possibilidade de transformação da sociedade a partir da construção e desenvolvimento de um movimento ecologista rígido nos princípios e flexível na interação com a sociedade.
- O referencial normativo é um sistema sócio-econômico radicalmente diferente do capitalismo e do socialismo. Pensam num sistema baseado na pequena propriedade privada e na propriedade cooperativa (predominantemente média, mas também grande) com autogestão do sistema produtivo e ênfase no Estado de nível local (município, região) como alocador de recursos.
Mas o caminho para chegar até aquele passa por uma longa transição, ecologizando progressivamente os capitalismos e socialismos realmente existentes. Os ec-realistas são a base fundamental dos Partidos Verdes. A posição ecologista realista é herdeira do socialismo utópico (Proudhon, Fourier, Owen), do socialismo democrático (Kautsky, Adler, Jaurés, Blum, Gramsci, o casal Webb, de Léon), do liberalismo de desenvolvimento da pessoa (John Stuart Mill, Henry Thoreau, James Dewey, Bertrand Russel) e do gandhismo.
- A posição ecossocialista é favorável a uma ruptura com a sociedade capitalista (e a socialista real, considerada uma variante estatizada da primeira) segundo o referencial normativo da estatização ampla do sistema produtivo gerido através de planejamento participativo centralizado. Esta postura considera inviável uma ecologização progressiva do capitalismo e do socialismo real tal como é preconizado pelos ecologistas realistas.
Um marxismo atualizado, bastante heterodoxo, continua sendo fundamental na visão de mundo ecossocialista. Ela é herdeira do "socialismo revolucionário-democrático" (Marx, Rosa Luxemburgo, Lefort-Castoriadis da fase "Socialismo ou Barbarie").
- A posição eco-capitalista argumenta a favor do mercado como alocador de recursos, sendo este disciplinado por um Estado que opera como guardião ecológico da sociedade, sendo compatível com o predomínio da grande propriedade oligopólica.
O Estado de Bem-Estar Social deverá se transformar no Estado de Bem-Estar Socio-Ecológico. A posição eco capitalista tem uma visão um tanto otimista do futuro (ao menos segundo os parâmetros relativamente pessimistas do conjunto do ecologismo), sendo herdeira da social-democracia (Bernstein, Schumpeter, Brandt, Palme) e do liberalismo social (Harold Laski).
- No movimento social ecologista mundial a posição ecologista realista é predominante, sendo minoritárias as outras três. Fora do movimento ecológico a situação muda. Nos setores sensíveis à ecologia da opinião pública ocidental, a posição eco capitalista é predominante, sendo secundária a posição ecologista realista.
A posição ecossocialista predomina nos setores sensíveis à ecologia da subcultura socialista-comunista ocidental (por exemplo, a forte corrente verde do Partido Comunista Italiano, encabeçada por Pietro Ingrao) e nos setores sensíveis à ecologia da oposição democrática em algumas sociedades da Europa Oriental (Polônia, República Democrática Alemã, Hungria, Tchecoslováquia). Finalmente, a posição ecologista fundamentalista, por definição, não existe fora do movimento ecologista.
- As quatro posições existentes no movimento ecologista mundial se refletem no Brasil com especificidades próprias. Além disso, na presente conjuntura, a questão da formação do Partido Verde se transforma também numa linha de clivagem interior ao movimento.
A heterogeneidade política
- Seguindo a tendência mundial, a posição ecologista realista é definitivamente predominante no interior do movimento ecológico brasileiro. Os ecologistas fundamentalistas e os ecossocialistas ocupam uma posição secundária no seio do movimento, ficando para os eco-capitalistas uma posição marginal.
Apesar desta posição marginal no movimento social, os eco-capitalistas ocupam lugares estratégicos nas agências estatais de meio ambiente. Por outro lado, os setores de classe média bem-informados, que se tornaram sensíveis à proposta ecologista nos últimos anos, identificam-se vagamente com o ecocapitalismo. Este, marginal no movimento social autônomo, é predominante na opinião pública sensibilizada e no aparelho estatal.
- Os ecossocialistas, apesar de secundários, têm crescido proporcionalmente mais que qualquer outro setor no seio do movimento ecológico, desde sua emergência em 1982 até o presente. Uma parte importante do contingente ecossocialista está formada por militantes da nova esquerda que se envolveram na construção do PT em 1980-1982 e foram se frustrando com o perfil mais tradicional que o partido ganhou no período 1983-1985.
Os ecossocialistas concentram seus esforços (proporcionalmente mais que os ecologistas realistas) no sentido de que o movimento penetre nos setores operários e populares. Os ecossocialistas brasileiros apostam no desenvolvimento de uma classe operária com consciência socialista e ecológica que seria o agente principal da mudança histórica.
- A receptividade dos operários aos ecossocialistas tem sido até hoje limitada e desigual: a receptividade é alta no que se refere à melhoria do meio ambiente de trabalho, mas baixa no referente a questões mais gerais. A mentalidade média do operariado brasileiro é favorável a altas taxas de crescimento econômico (sem importar seu caráter degradador do meio ambiente) e redistribuição da renda.
Mas, em algumas cidades ou áreas industriais (Gravataí, Criciúma, Cubatão, etc...), setores do sindicalismo manifestam sensibilidade global para os problemas ecológicos. Uma parte importante dos ecossocialistas são militantes ou simpatizantes do PT e apostam na sua transformação num partido ecossocialista, argumentando que todo componente inovador de sua corrente socialista democrática deverá reconhecer a médio prazo o caráter crucial dos problemas ecológicos no mundo contemporâneo.
- A convivência entre os ecologistas fundamentalistas, os eco-capitalistas e os ecossocialistas no interior do movimento ecológico é bastante conflitiva. Os ecologistas realistas desempenham um papel fundamental de mediadores e reguladores de conflitos entre os estros três setores.
Os ecologistas fundamentalistas tendem a considerar os eco-capitalistas e ecossocialistas um tanto estranhos ao movimento ecológico e potencialmente deturpadores da pureza do movimento. Os eco-capitalistas e ecossocialistas, por sua vez, tendem a desconsiderar os fundamentalistas pelo seu caráter romântico e politicamente ingênuo, embora reconheçam a dedicação ao movimento por parte daqueles.
- Os ecossocialistas desconfiam das reais e potenciais vinculações com a burguesia por parte dos eco-capitalistas e tendem a criticar em bloco a tecno-burocracia eco-capitalista das agências estatais do meio ambiente. Os eco-capitalistas, por sua vez, desconfiam dos objetivos dos ecossocialista, e temem que estes façam entrismo rio movimento ecológico para transformá-lo num apêndice dos partidos de esquerda.
Os eco-capitalistas tendem a ser defensores e justificadores da tecno-burocracia das agências estatais de meio ambiente, que percebem como isolada e enfrentada pelo resto da tecno-burocracia estatal (agente do desenvolvimento predatório).
- Os ecologistas realistas, predominantes no interior do movimento social, têm pouco peso na opinião pública sensibilizada, já que sua proposta não é facilmente decodificada (em grande medida por dificuldades de explicação), tendendo a ser confundida com a ecologista fundamentalista e, conseqüentemente, descartada como romântica e inviável.
Desse modo, os eco-capitalistas constituem ponte privilegiada entre o movimento ecológico e os importantes setores médios sensibilizados; os ecossocialistas fazem a ponte com os pequenos setores operários sensibilizados; os ecologistas realistas e ecossocialistas fazem a ponte com os pequenos setores populares urbanos e rurais sensibilizados.
- O campo de disputa mais importante que se estabelece na atualidade é entre eco-capitalistas e ecologistas realistas em relação à classe média "culta", os segundos desafiando a posição de ponte privilegiada que os primeiros detêm.
A questão da criação do Partido Verde é colocada no debate do movimento ecológico brasileiro a partir de 1985. Quatro posições delineiam-se no início do debate:
- O Partido Verde é desejável e viável a curto prazo;
- O Partido verde é desejável, mas não é viável a curto prazo;
- O Partido Verde não é desejável;
- O PT pode se transformar num Partido Verde. A primeira posição, sustentada fundamentalmente pelo "Coletivo Verde" do Rio de Janeiro, argumenta que a participação na arena parlamentar é fundamental para a luta ecologista, como vem demonstrando a experiência européia.
Existe, segundo esta corrente, um vasto ecologismo espontâneo na juventude brasileira, que não poderia ser canalizado sem expressões de alta visibilidade como um partido político especificamente ecologista.
- A segunda posição, sustentada entre outros pelo "Movimento Ecológico Livre" de Florianópolis, argumenta que o movimento ecológico brasileiro é ainda insuficientemente consistente na sua base para se lançar à dificílima tarefa de construção de um partido.
Nas atuais condições, a criação de um Partido Verde corre o sério risco de repetir os mesmos problemas dos partidos tradicionais (personalismo, oportunismo, clientelismo, sectarismo). A terceira posição argumenta que a atuação na arena parlamentar é negativa para o movimento ecológico, já que o leva inexoravelmente à realização de compromissos com as formas tradicionais de fazer política.
- A quarta posição, sustentada fundamentalmente pelos ecologistas petistas gaúchos, argumenta que é possível transformar o PT num partido que atenda às principais características e valores de um Partido Verde, com a vantagem de ter uma base popular, elemento pouco presente nos similares europeus.
Dois anos se passaram desde o início do debate e as novas realidades políticas, particularmente o resultado das eleições de 15 de novembro de 1986, com um desempenho pobre das "chapas verdes" suprapartidárias, levam a significativas mudanças nos alinhamentos de forças em relação ao Partido Verde.
- A primeira posição se consolidou extraordinariamente no Rio de Janeiro e ganhou muitos adeptos em São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais. A segunda posição perdeu importância, na medida em que o Partido Verde ia se tornando uma realidade no Rio de Janeiro, apesar de aderirem a ela setores qualitativa e quantitativamente importantes do movimento.
A terceira posição ficou reduzida ao "núcleo-duro" dos fundamentalistas. Por último, a quarta posição consolidou-se no Rio Grande do Sul, mas debilita-se nos outros estados do Sul-Sudeste devido à capacidade de penetração do Partido Verde.
- O perfil dos Partidos Verdes em formação nos estados do Sul-Sudeste é bastante diferenciado segundo a cultura política local e a especificidade do movimento ecológico. Por exemplo, o Partido Verde do Rio de Janeiro tem o perfil de uma coligação entre ecologistas realistas e ecossocialistas, com o predomínio dos primeiros e com a inclusão muito secundária de ecologistas fundamentalistas e eco-capitalistas; já o Partido Verde de Santa Catarina tende a ter o perfil de uma coligação entre ecologistas realistas e eco-capitalistas com predomínio dos primeiros e participação marginal de ecologistas fundamentalistas e ecossocialistas.
A heterogeneidade política