Pedagogia da Terra
Arlene Carvalho de Assis Clímaco
Walderês Nunes Loureiro
Universidade Federal de Goiás
Comunicação
Formação e profissionalização docente
- O presente trabalho destina-se a sistematizar observações acerca do curso de Pedagogia da Terra, nome do curso oferecido em convênio estabelecido entre o INCRA e a UFG a fim de formar professores para áreas de assentamentos rurais.
Apresentaremos, inicialmente, um rápido histórico da trajetória do curso, desde que foi solicitado à Universidade até o momento atual. Em um segundo momento, buscaremos entender como iniciativas desta natureza se inserem no contexto da sociedade brasileira atual.
- Por último levantaremos algumas questões que nos tem sido postas pelo debate acerca da democratização da universidade e pelo processo de desenvolvimento do curso.
Histórico do curso
- No final do primeiro semestre de 2005, a direção da FE/UFG foi procurada por representantes da Via Campesina, que em Goiás agrega cinco movimentos sociais do campo - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB);
Pastoral de Juventude Rural (PJR) e Comissão Pastoral da Terra (CPT) - com a proposta de realização de um convênio para a oferta de um curso de Pedagogia destinado à formação de professores para assentamentos. A formação pleiteada destinava-se a professores que não possuíam licenciatura e a outros integrantes do movimento que pretendiam dedicar-se a atividades educacionais.
- A partir dessa solicitação a FE iniciou as discussões sobre esse curso e providenciou a elaboração do Projeto. A Faculdade aceitou o desafio, em face à sua experiência de quase quatro décadas como instituição formadora de educadores e que traz em seu currículo experiências diversificadas, bem como um já consolidado Programa de Pós-Graduação, com linhas de pesquisa que abrangem, entre outros, as temáticas de movimentos sociais, de políticas públicas e de formação e profissionalização docente.
Após longo trâmite, em que a representação da Faculdade de Educação teve que participar de várias reuniões, tanto no âmbito da Universidade como junto ao Ministério Público Federal que, então, questionava a constitucionalidade da iniciativa, o Projeto conseguiu aprovação em todas as instâncias da UFG . Foi, então, elaborado um convênio afinal firmado entre o INCRA e a UFG, em dezembro de 2006.
- A partir daí foram tomadas providências para a realização do curso, tais como preparação do vestibular e das demais condições para a recepção e a estadia dos alunos em Goiânia. É importante registrar que naquele momento estavam previstos recursos da ordem de R$ 3.000,00 aluno/ano, devendo tais recursos cobrir todas as despesas com o curso – passagens, alimentação, hospedagem, ‘kit pedagógico’ e pagamento de professores.
Ante esta exiguidade de recursos, fez-se necessária a contribuição dos diferentes parceiros a fim de minimizar os gastos e viabilizar a realização do curso. Ante a necessidade de alojar os alunos no próprio recinto da Universidade, foi acertado que as aulas seriam ministradas, em tempo integral, em períodos de férias dos cursos regulares, devendo ser oferecidas nos meses de julho, janeiro e fevereiro até que se complete o total de horas previsto.
- Em janeiro de 2007 ocorreu, por fim, o início do curso cujas exigências de funcionamento não se limitaram às iniciativas antes apontadas. Embora se trate de um curso com as mesmas disciplinas e a mesma carga horária do curso regular, a organização sob a forma de módulos, divididos em atividades presenciais e não presenciais exigia, uma forma específica de distribuição dos conteúdos das disciplinas, um trabalho diferenciado dos professores para acompanharem as atividades realizadas nos períodos não presenciais, bem como uma forma de registro acadêmico também diferenciado.
Dado o fato de que todas estas questões eram pouco familiares à maioria dos professores e à coordenação do curso, foram realizadas várias reuniões com o objetivo de definir possibilidades de trabalho. Nestas reuniões, contamos com a participação de uma professora que, ficaria como responsável pela orientação de toda a parte não presencial, ao longo do curso.
- No que se refere à gestão do curso, o projeto prevê que “a coordenação geral (...) será feita por dois professores da Universidade que incorporarão um Colegiado constituído por representantes dos movimentos sociais do campo, dos docentes do curso e dos educandos, com poder consultivo e deliberativo sobre o curso, respeitadas as disposições legais existentes”.
Desde então, a cada módulo os alunos escolhem seus representantes junto ao Colegiado; já o revezamento entre os representantes de professores e dos movimentos sociais, em geral ocorre quando o representante pede para sair e/ou o professor termina sua participação no curso. Este Colegiado tem se reunido regularmente uma vez a cada módulo e se pronuncia acerca de questões não previstas no planejamento do curso.
- Temos que ressaltar, entretanto, que a participação dos alunos vai muito além do Colegiado. Cientes de que sua permanência nos alojamentos durante longos períodos exige que desenvolvam formas de convivência coletiva, além de se constituírem em momentos de reforço dos compromissos político-ideológicos, eles se organizam em equipes de infraestrutura, mística, disciplina, memória, ciranda, atividades culturais, saúde, esporte e lazer, finanças.
Além disto, os respectivos movimentos aproveitam sua estadia aqui para desenvolverem, fora do horário das aulas, atividades e cursos de aprofundamento político-ideológico. Têm sido vários os desafios enfrentados ao longo do curso, sendo que um inicial foi o fato de que, havendo o convênio previsto o ingresso de 80 alunos apenas 62 se matricularam.
- Ante esta questão e a experiência trazida pelos movimentos acerca dos índices de desistência ocorridos em cursos semelhantes, optou-se pela realização de um segundo vestibular, oferecendo-se um primeiro módulo, entre maio e junho, de modo que em julho/2007, todos os alunos já frequentaram, juntos, o módulo II.
Desde o início do curso, a rotina da coordenação tem se alternado entre atividades específicas dos momentos presenciais – passagens, hospedagem, alimentação, cópias de xerox, disponibilidade de aparelhos de som, TV, data show, acesso a biblioteca e ao laboratório de informática, reuniões do Colegiado, reuniões com professores e com alunos, realização de um seminário ao final de cada módulo, atendimento a alunos e a professores – e atividades que precedem tais momentos e que são realizadas enquanto os alunos, em seus locais de moradia, realizam as atividades não presenciais.
- Em ambos os casos, as atividades da coordenação envolvem atividades variadas, muitas das quais vão sendo mudadas a cada módulo em função da experiência que vai sendo acumulada. As atividades que precedem os períodos presenciais de cada módulo quase sempre envolvem negociações no plano interno da UFG.
Em virtude de o curso funcionar em período de férias escolares, em geral de férias da maioria dos funcionários, alguns serviços funcionam precariamente, exigindo agendamentos prévios e/ou negociações com diferentes setores da universidade a fim de obter determinados serviços. Questões como local para lavar roupa e quadra para que os alunos pratiquem algum esporte, têm que ser negociadas a cada novo módulo e, no caso das quadras, sempre sem sucesso.
- A oferta de alimentação, tanto almoço e jantar como o café da manhã e os lanches têm passado por diferentes formas de aquisição, de preparação e de local em que são oferecidos. Na tentativa de garantir gastos menores, mas preservando a higiene e o conforto para os alunos, a cada módulo vêm sendo tentadas diferentes formas.
Além das questões de infraestrutura, a preparação pedagógica de cada módulo requer contato com professores, reuniões prévias, recebimento e encaminhamento de trabalhos de alunos, mediação entre alunos e professores ao longo do período não presencial, viabilização de pagamento dos monitores e de ressarcimento das despesas realizadas nos encontros, recebimento e registro de notas dos alunos, pagamento dos professores.
Pedagogia da Terra
O contexto de surgimento de cursos desta natureza:
- Falar da educação do campo exige situar de qual educação e de qual campo se fala. Há que se precisar, também, a natureza da sociedade na qual tal campo se insere e das políticas públicas pensadas para o campo. Neste sentido, é imprescindível que se conceba a sociedade como permeada por contradições internas que se manifestam em todos os momentos da vida coletiva.
Sem a compreensão da sociedade como um aglomerado de interesses contraditórios, é impossível entender a trajetória da elaboração de quaisquer políticas. É sobejamente conhecido o fato de que o Brasil, que ao longo do século XX se tornou uma nação com um parque industrial significativo, manteve uma estrutura social bastante rígida, o que se expressa em uma sociedade na qual o desfrute dos bens, seja de ordem material ou cultural-simbólica, continua ainda extremamente concentrado.
- Sem dúvida que, para a continuidade desta concentração, além de uma tradição patrimonialista, contribuíram os sucessivos períodos ditatoriais pelos quais o país passou ao longo do século XX e que, não por acaso, foram deflagrados em momentos em que o controle social por parte dos grupos tradicionalmente dominantes parecia sofrer alguma ameaça com a emergência das massas populacionais como interlocutoras na cena política.
Não há, pois, como compreender os atuais movimentos sociais, tanto os das cidades como os do campo, bem como suas reivindicações no âmbito educacional, isolados do atual contexto de (re)democratização da sociedade brasileira, bem como do processo de globalização como fruto do próprio modelo de desenvolvimento capitalista, que tem na mundialização de certos padrões de produção e de consumo sua face mais conhecida tem, também por outro lado, o mérito de trazer à tona carências e demandas de segmentos populacionais secularmente explorados e ignorados.
- Assim, refletir sobre o processo de formação de professores para a primeira fase do ensino fundamental, tal como oferecido pelo curso ora em realização na Faculdade de Educação exige que nos coloquemos mais algumas questões tais como: em que medida a legislação atual pode ser vista como expressão de um processo de democratização?
Em que medida a emergência dos movimentos sociais como interlocutores no processo de elaboração de políticas tem contribuído com o processo de democratização da sociedade? Sabe-se que a universalização da educação fundamental como direito supõe, entre outras coisas, a existência de uma base jurídica que sustente tal direito.
- Entretanto, se tomamos como objeto de nossa análise a legislação educacional elaborada ao longo do século XX, quando o Brasil já se havia transformado em uma República, vamos perceber que o direito à educação escolar não se estende igualmente a todos. Cabe-nos buscar entender o porquê desta desigualdade.
O fenômeno da ‘emergência das massas e de suas demandas’ como interlocutoras dos poderes públicos tem marcado presença em grande parte das sociedades ocidentais no período pós Segunda-Guerra, tanto nos países desenvolvidos da Europa, que inauguraram o processo, quanto nos países da América Latina um pouco mais tardiamente, para ficarmos nestes dois casos
- No caso do Brasil, o avanço do capitalismo sobre as cidades e o campo levou a que significativos contingentes populacionais se deslocassem do campo, cada vez mais voltado para o agronegócio, e se dirigissem às cidades na expectativa, muitas vezes frustrada, de garantir melhores condições de vida. Este movimento populacional aliado ao processo de democratização política da sociedade foram elementos que, sem dúvida, contribuíram para o ressurgimento dos movimentos sociais no país nas últimas três décadas.
Em numa perspectiva republicana os direitos dos cidadãos devem ser assegurados a todos, mas o que se vê na história da legislação brasileira – e de resto, de todo o mundo ocidental – é que a extensão da universalidade e da obrigatoriedade educacionais só ocorre como resultado de uma correlação de forças em que os excluídos do processo vão forçando o alargamento das políticas de forma que sejam, também, contemplados. (Ver, entre outros, Luzuriaga ,1959; Lopes, 1981; Spósito ,1984).
- No contexto de democratização vivenciado pelo país nas últimas décadas, em que o aparato legal ditatorial vem sendo substituído por instrumentos legais mais democráticos, se torna muito evidente a disputa de diferentes interesses em torno a várias questões, entre elas as que se referem às políticas educacionais, que ora nos interessam. Ao falarmos em políticas públicas, em específico em políticas educacionais, não podemos, pois, nos esquecer que as políticas, sejam elas quais forem, não são definidas por governos à revelia da população.
O que temos que buscar entender é: a interesses de qual segmento da população determinada política responde. Um poder de estado – que pode ser federal, estadual ou municipal – não subsiste sem significativo apoio (por ação ou por omissão) por parte da população. As leis, em geral, expressam um arranjo possível em face à diversidade de interesses e de forças políticas que se confrontam na sociedade.
- Assim, se observarmos a legislação brasileira do período republicano, vamos constatar que o processo de universalização do direito à educação, embora presente no discurso de educadores e de políticos, avançou em geral muito timidamente e com acentuados retrocessos nos dois longos períodos ditatoriais – 1937/1945 e 1964-1988. A história da educação brasileira mostra que o descaso dos grupos dominantes com a educação das massas, durante a Primeira República (Nagle, 2001), persistiu nos anos que se seguiram ao fim desta.
No que se refere especificamente à educação do campo, um olhar retrospectivo é bastante desolador. Embora várias das Constituições e das leis educacionais se refiram à obrigatoriedade da oferta da educação (primária/fundamental) a todas as crianças, o campo esteve, de alguma forma, livre desta obrigatoriedade. Resta-nos, pois, concluir que a educação da criança do campo não se concretizou como obrigação do poder público, o que pode ser facilmente comprovado comparando-se as estatísticas educacionais da cidade e do campo.
- O avanço de discussões e propostas para a chamada ‘educação popular’, entre as quais podemos situar a educação dos camponeses, só ganha destaque a partir dos anos de 1950, no primeiro período em que o país experimenta uma organização política que pode ser chamada de democrática. Neste momento, movimentos ligados à Igreja Católica, à UNE, ao PCB, além de iniciativas governamentais vão trazer para a cena política a questão da educação popular. Começa, então, a ganhar espaço uma nova perspectiva de educação popular, cuja expressão mais conhecida se sintetiza em Paulo Freire.
A educação, sob esta perspectiva, se fará a partir de um diálogo entre os conhecimentos trazidos pelo educador e aqueles trazidos pelo educando, buscando entender os vínculos entre o indivíduo, seu grupo social e a sociedade mais ampla. Esta nova perspectiva acerca da educação popular trouxe desdobramentos para a educação em todo o período posterior de nossa história, até nossos dias.
- A partir deste momento, ainda que tímida e vagarosamente diversos ‘sujeitos’, até então excluídos da educação formal começam a se fazer ouvir quanto às suas expectativas educacionais. É a luta pela criação de ginásios, nas décadas de 1940/50 (Spósito, 1984); a difusão do método Paulo Freire em inúmeras experiências de alfabetização; a luta por creches na cidade de S. Paulo (Singer e Brandt, 1980).
São educadores de diversos níveis, bem como sindicatos e movimentos sociais que, desde final dos anos de 1970 até o presente momento, sucessivamente, em diversos movimentos e/ou eventos, vêm se organizando e discutindo propostas educacionais em função da Constituição, da elaboração da LDB e do PNE, da elaboração de Planos Decenais nos estados e nos municípios, bem como o atendimento específico de populações diferenciadas até muito recentemente ignoradas tal como, quilombolas, indígenas e camponeses.
- A emergência destas populações como interlocutoras no processo de elaboração de políticas levou à criação, em 2004, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD -, cuja existência, em suas próprias palavras:
“... marca uma nova fase no enfrentamento das injustiças existentes nos sistemas de educação do País, valorizando a diversidade da população brasileira, trabalhando para garantir a formulação de políticas públicas e sociais como instrumento de cidadania”. (página inicial da SECAD, portal do MEC).
Temos que destacar, ainda, dois estudiosos que têm nos ajudado na compreensão deste fenômeno. De um lado, Gramsci, cuja obra tem contribuído para que entendamos a dinâmica social como algo em constante construção a partir de embates entre diferentes interesses de classe, embates estes que podem alterar a posição dos agentes no processo de defesa e/ou solapamento de um dado projeto hegemônico, ao mesmo tempo em que se busca assentar as bases de um novo projeto de sociedade.
- De outro lado, referindo-se diretamente ao tema da educação superior, Santos (2005), nos traz uma reflexão sobre a universidade no século XXI e os dilemas que a afligem. O autor aponta três grandes crises, que envolvem pólos antinômicos a que a universidade, em seu processo de democratização, estaria exposta.
Ater-nos-emos, aqui, àquela que ele denomina crise de hegemonia, cujos pólos seriam o conhecimento universitário e o conhecimento pluriversitário. No primeiro caso, “são os investigadores quem determinam os problemas científicos a resolver, definem a sua relevância e estabelecem as metodologias e os ritmos de pesquisa” (Santos, 2005, p.40).
- Já o conhecimento pluriversitário “é um conhecimento contextual na medida em que o princípio organizador da sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada” (Santos, 2005, p. 41). Neste sentido, estes dois tipos de conhecimento se opõem, evidentemente com uma dose de exagero que os tipos ideais comportam, conforme ressalta o próprio autor.
As perspectivas destes autores podem nos ajudar a pensar este momento de construção de novas experiências no âmbito da educação superior, quando tanto o MEC quanto as universidades se dispõem a atender grupos específicos, muitas vezes com demandas diferenciadas entre eles e em relação ao que tradicionalmente se faz na universidade. No documento da “II Conferência Nacional por uma educação do campo”, especialmente no item
- “O que queremos”, vamos encontrar vários exemplos da busca de interatividade entre os movimentos do campo e a universidade e demais instituições ligadas à educação, tais como o MEC, institutos de pesquisa e outros.
Ao explicitar suas demandas, os movimentos reafirmam repetidas vezes a necessidade do respeito à sua identidade cultural e à diversidade dos povos do campo, à necessidade de qualificação profissional adequada ao meio e de que a:
“formação e qualificação vinculadas à Educação do Campo, junto às universidades [sejam] construídas coletivamente com os sujeitos do campo, as equipes técnicas contratadas e os órgãos públicos responsáveis pela assistência técnica” (Interação, 2004, p. 289).
Voltando à questão da legislação, vamos perceber que só a partir da Constituição de 1988, que estabelece a educação como direito subjetivo, é que os legisladores encontram uma base inquestionável para discutir a educação como direito de todos, em qualquer etapa da vida, ainda que a obrigatoriedade se limite à educação fundamental.
- Neste sentido, a legislação atual - tanto a Constituição, como a LDB, o PNE, e as Diretrizes para a Educação Básica nas Escolas do Campo, para ficarmos no âmbito da legislação federal - abriu a possibilidade da oferta do nível fundamental de ensino, seja na cidade, seja no campo.
Há que se entender, também, que esta legislação aprovada após o fim da ditadura incorpora, ainda que de maneira contraditória, anseios democráticos de vários agentes sociais: partidos políticos, igrejas, movimentos sociais e sindicais que, entre outros, simultaneamente lutaram contra a ditadura e pela construção de uma sociedade que reduzisse as desigualdades sociais, econômicas e políticas entre os indivíduos.
- Entretanto, temos que considerar que a oferta educacional, embora não encontre mais obstáculos legais, ainda é recheada de problemas que advêm das referidas contradições que permeiam a sociedade.
São inúmeras as questões com as quais nos deparamos, entre as quais podemos destacar: a inexistência de escolas e de professores em número suficiente para garantir, no próprio campo, a educação das crianças que ali vivem; o incremento do transporte escolar como forma preferencial para garantir a educação das crianças e adolescentes que residem no campo; a dificuldade de professores concursados/contratados pelas secretarias municipais e/ou estaduais de se deslocarem para as escolas do campo; a dificuldade dos sistemas de ensino ofertarem uma educação adaptada às peculiaridades climáticas, culturais e de cultivo que o campo apresenta.
- Estas e outras questões têm provocado importantes dilemas para a população campesina, um dos quais se destaca: enviar seus filhos para as escolas das cidades ou lutar para que a escola seja ofertada próxima às suas residências no campo? Neste caso, surge uma outra questão: quem deve ser o professor para atuar nesta escola?
Podemos dizer que este é um problema antigo que, entretanto, continua na ordem do dia e, como tal insiste em desafiar famílias, políticos e políticas. E não há dúvidas que o período de redemocratização que estamos vivendo nas últimas três décadas, bem como a emergência de movimentos sociais, notadamente dos movimentos sociais do campo, tem contribuído para trazer novos olhares sobre esta questão.
- Convencidos que estão de que a permanência no campo lhes é fundamental, militantes de vários dos movimentos sociais do campo, entre os quais se destaca o MST, por seu tamanho e militância, têm insistido em obter a garantia de todos os direitos constitucionais, entre eles o da educação, vista como um dos elementos imprescindíveis à sua permanência no campo.
E mais, que esta educação seja ofertada o mais próximo possível aos locais de moradia dos alunos, que seja estendida aos que a ela não tiveram acesso na idade própria e que abranja toda a educação básica. Esta concepção, pouco a pouco vem ganhando relevância, tanto no interior do Ministério da Educação, com a já mencionada criação da SECAD, em 2004, quanto no interior do MDA, com a criação do Pronera, em 1998.
- Abertas as possibilidades legais antes mencionadas e ante as novas exigências de formação de professores constantes na Lei 9394/94 (LDB), vários convênios foram solicitados às universidades, em especial às públicas. Tais solicitações, feitas conjuntamente pelo INCRA e pelos movimentos sociais, visam viabilizar a oferta de cursos em vários níveis, seja como atividades de extensão – em geral voltadas para EJA -, seja como formação inicial para cursos de ensino médio, incluindo o magistério, ou cursos superiores, entre os quais predominam os de licenciatura.
Comentários finais:
- Sem dúvidas, a proposta de oferta deste curso suscitou no interior da universidade, questões novas. Entre os contrários à sua oferta, pelo fato de temerem que o crescente aumento no atendimento a categorias especiais acabasse por configurar uma ‘privatização’ da Universidade, ou mesmo por discordarem do fato de que tais categorias vissem facilitado seu acesso ao ensino superior. Entre os favoráveis à realização do curso, porque estavam cientes de que se tratava de algo até então muito distante do cotidiano de trabalho da Universidade, que necessitava, por isso, preparar-se para enfrentar o desafio.
A concretização do curso, entretanto, além de ter que superar as dificuldades iniciais, deparou-se com várias outras, até então não imaginadas. São questões de várias ordens. Há, por exemplo, certa invisibilidade do curso, expressa no fato de que o movimento estudantil, seja no âmbito da UFG, seja no da Faculdade de Educação, jamais tomou conhecimento da existência do curso, ou no fato de que os moradores da casa dos estudantes têm negado, sistematicamente, o acesso dos alunos do curso às quadras esportivas da residência estudantil.
- Por outro lado, há uma ‘excessiva visibilidade’, no fato de alguns - felizmente não a maioria - atribuírem todos os problemas de infraestrutura enfrentados pela Faculdade de Educação em períodos de aulas dos alunos do curso, à sua presença. Embora os alunos quase nunca reclamem junto à coordenação acerca de discriminações sofridas, sem dúvida que isto contribui para seu recolhimento, inclusive com o fato de muitos deles sequer frequentarem a biblioteca.
Há, também, questões relacionadas à própria organização da Universidade, tal como as formas de registro acadêmico e que têm se constituído em um problema. De início, o curso foi pensado para funcionar em módulos, com cada disciplina desenvolvida ao longo de vários módulos, o que daria a professores e alunos tempo para se conhecerem, conversarem, reavaliarem caminhos, refazerem atividades, sendo que as notas só seriam fechadas ao final de cada disciplina.
- Entretanto, não foi possível a elaboração de uma forma de registro que contemplasse tal especificidade, tendo o curso que se enquadrar como semestral, correspondendo assim cada módulo a um semestre, o que trouxe interferências na metodologia de trabalho pensada inicialmente.
Outro dilema com o qual se depara é entre as exigências que em geral se faz a alunos de um curso superior e as exigências que lhe são feitas pela sua luta pela sobrevivência e pelos movimentos aos quais se filiam e que, de alguma forma, nos remetem à antinomia apresentada por Santos entre o conhecimento universitário e o conhecimento pluriversitário.
- Esta antinomia, de alguma forma se encontra presente nas várias dicotomias com as quais se defronta a partir desta aproximação entre movimentos sociais e universidade, quais sejam: a adequação entre tempo real e tempo previsto para estudo; as exigências dos movimentos e as exigências dos professores - e que implicam em diferentes concepções da relação teoria-prática; o tempo comunidade/estudo individual e a necessidade do trabalho diário de subsistência; tensões entre concepções de relações democráticas e princípios políticos de disciplina e de autonomia; criação e reforço de uma identidade interna a cada movimento que, ao mesmo tempo, se propõe também o desenvolvimento de tarefas mais amplas que transcendam os movimentos; a conciliação entre autonomia individual e disciplina grupal.
Há, ainda, várias questões relacionadas ao dia a dia do curso, tais como pagamento aos cuidadores das crianças da Ciranda; fracasso da tentativa de nos mantermos interconectados via mídias educacionais, o que resultou na dispensa da professora inicialmente pensada para coordenar esta parte; a questão da data da entrega dos trabalhos do tempo comunidade que, ao longo de cada módulo, teve uma orientação diferente, sendo que no quinto módulo parece que encontramos uma fórmula mais eficaz.
- Enfim, sente-se, talvez mais que em qualquer outro momento de nossa vida profissional, que se vive um processo em permanente construção.
Bibliografia:
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GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
LOPES, Eliane Marta T. Origens da educação pública. São Paulo, Loyola, 1981.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação pública. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1959.
MDA, portal do Pronera. MEC, portal da SECAD.
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Rio de Janeiro, DP&A, 2001.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Universidade no século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo, Cortez, 2005.
SINGER, Paul e BRANT, Vinícius C.(orgs.) São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis, Vozes, 1980.
SPÓSITO, Marília P. O povo vai à escola. São Paulo, Loyola, 1984. II Conferência Nacional por uma Educação do Campo. Revista INTER.AÇÃO, 29:2 (283-293). Goiânia, Ed. UFG, 2004
Pedagogia da Terra