Arautos da razão:
A paralisia no debate sobre transgênicos e meio ambiente
Marcelo Leite
Jornalista, colunista da Folha de S.Paulo e do blog cienciaemdia.zip.net, é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor de Promessas do genoma (Editora UNESP, 2007) e Folha explica os alimentos transgênicos (Publifolha, 2000)
- Em 21 e 22 de outubro de 1999, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e o Grupo Consultor sobre Pesquisa Agrícola Internacional (rede mais conhecida pela sigla CGIAR) organizaram em Washington, D.C., na sede do Banco Mundial, uma conferência internacional marcada pela diversidade e pelo pluralismo:
A Biotecnologia Agrícola e os Pobres. Na inevitável mesa-redonda sobre o papel e a responsabilidade dos meios de comunicação no esclarecimento do público sobre o tema, o jornalista Rick Weiss, do diário The Washington Post, foi interpelado por Joel E. Cohen, respeitado biólogo do Laboratório de Populações da Universidade Rockefeller, sobre a razão de jornais darem tanto espaço para ciência de má qualidade (junk science) como a produzida, segundo Cohen, pelo grupo de Joseph E. Losey, entomologista da Universidade Cornell.
- A resposta de Weiss foi simples e direta: porque o trabalho havia sido publicado num periódico com revisão por pares (peer review) e reconhecido por cientistas naturais como um dos mais influentes do mundo, a Nature.
O artigo em questão era uma simples comunicação, de menos de uma página, que Losey havia escrito com Linda S. Rayor e Maureen E. Carter: "Pólen transgênico prejudica larvas de borboletas-monarcas".
- Apesar da brevidade, causou furor. Eles demonstravam que lagartas da famosa espécie, que não é uma praga do milho, morriam quando se alimentavam de folhas de uma erva comum nos arredores da lavoura desse grão aspergidas com pólen de milho transgênico Bt (modificado geneticamente para produzir uma toxina da bactéria Bacillus thuringiensis — daí Bt — mortal para lepidópteros).
A inferência era que campos cultivados com milho Bt representavam uma ameaça à sobrevivência de insetos que nada tinham a ver com a agricultura e são valorizados por sua beleza e seu carisma. Defensores da biotecnologia na solução de problemas agrícolas, como Cohen, atacaram o desenho do experimento, realizado em laboratório, supostamente em condições muito díspares das condições reais no meio ambiente, dizendo que as lagartas de Cornell haviam sido "alimentadas à força".
- A controvérsia científica prosseguiu, com novos experimentos buscando responder de maneira mais circunstanciada às perguntas levantadas pelo entomologista Losey.
Bons tempos aqueles, em que as dúvidas sobre os efeitos ambientais da tecnologia da transgenia suscitavam a produção de estudos empíricos e de conhecimento objetivo, verificável. Havia decerto fissuras na comunidade científica opondo biólogos moleculares e alguns agrônomos, de um lado, e ecólogos e especialistas em certos grupos de organismos, como os entomólogos, de outro.
- Hoje em dia, porém, o terreno comum para travarem esse embate sadio parece inapelavelmente contaminado por uma polarização exacerbada, em que os contendores são imediatamente classificados ou como lacaios do capital e da tecnociência, de um lado, ou como obscurantistas e inimigos do progresso, de outro. No Brasil, o templo dessa querela das investiduras — quem representa a razão e a ética, "cientistas" ou "ambientalistas"? — é a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Há quase uma década os dois partidos fundamentalistas se digladiam ali, obtendo como resultado somente uma quase total paralisia decisória: apenas três licenças para plantio em escala comercial de cultivares transgênicos foram concedidas desde 1998.
- Agremiações científicas como a SBPC (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) hoje se perfilam ao lado da CTNBio, supostamente na companhia incondicional da maioria da comunidade científica que representam. Contra a comissão se aliam organizações como o Greenpeace, procuradores da República (Ministério Público Federal) e representantes na comissão de ministérios como o do Meio Ambiente (MMA).
Este segundo partido se esforça por oferecer apoio científico e empírico para sua rejeição liminar da tecnologia transgênica, mas a eficiência de sua ação obstrucionista depende da capacidade de criar constrangimento, pela exposição dos intestinos da CTNBio, e do atiçamento de terrores vagos e mal informados de muitas pessoas acerca do potencial apocalíptico da engenharia genética.
- O outro partido, ao menos por seus líderes mais loquazes, luta para manter o monopólio "técnico" da decisão e circunscrever o debate à especialidade da biossegurança (como trai desde logo o próprio nome da comissão), mal disfarçando a intenção de evitar, no processo de autorização, os assuntos mais espinhosos das conseqüências ambientais, sociais, políticas e econômicas da introdução dos transgênicos na agricultura — precisamente aquilo que interessa ao campo oposto debater.
Não é um arranjo propício à racionalidade e à objetividade, mas tampouco existe outro foro para escrutinar publicamente os transgênicos como tendência de intensificação de um modelo de agricultura cuja sustentabilidade há boas razões para questionar (ainda que não necessariamente condenar, a prior
Os Riscos em Questão:
- Os riscos associados com transgênicos na literatura recaem em dois tipos principais: para a saúde humana e para o ambiente. O primeiro tipo, aplicável a cultivos alimentares, decorre do raciocínio de que as modificações genéticas efetuadas nas plantas as levam a secretar substâncias ausentes ou incomuns nos alimentos convencionais.
Como já foi dito, vegetais transgênicos da modalidade Bt produzem substância de estirpe bacteriana (embora seja oportuno lembrar que preparados com o Bacillus thuringiensis constituem o inseticida natural predileto da chamada agricultura orgânica). Compostos inexistentes na cadeia alimentar, exatamente por serem estranhos aos organismos que passarão a ingeri-los em conseqüência da transgenia, poderiam muito bem desencadear processos alérgicos ou outras disfunções fisiológicas. Daí surgiram expressões fóbicas como "Frankenfoods", comidas Frankenstein, que prosseguem assombrando a imaginação de muita gente.
- No final dos anos 1990 ainda persistiam dúvidas sobre efeitos tóxicos em alguns experimentos com roedores, mas hoje se pode dizer que prevalece na literatura científica um consenso de que ao menos os produtos transgênicos há uma década no mercado (soja, milho e canola, principalmente) não acarretam riscos identificáveis para a saúde dos consumidores.
- A segunda família de riscos a considerar se subdivide em três ramos: poluição genética, surgimento de superpragas e danos a espécies circundantes. No primeiro caso, o temor é que plantas transgênicas transmitam, por hibridização, seus genes inseridos a parentes silvestres (o pólen contendo transgenes se espalha pelo ambiente e pode fertilizar plantas fora do campo de cultivo). Tal preocupação é mais aguda nos casos de regiões designadas como centros de origem ou diversidade dos principais vegetais de cultivo, como milho (América Central e México), arroz (Sudeste Asiático), soja (China) e mandioca (América do Sul).
Também causa apreensão a contaminação de variedades locais importantes, como raças crioulas, fruto da seleção continuada por agricultores tradicionais. Essas variedades silvestres e crioulas constituem um importante repositório de diversidade genética, pois fornecem matéria-prima para cruzamentos e criação de novas variedades.
- A contaminação dessas populações em seus centros de origem, caso o cultivo de plantas transgênicas seja permitido nessas regiões, representaria uma ameaça à pureza desse material genético, risco que em geral é designado como poluição genética ou, numa versão mais benigna, como o problema do fluxo gênico.
O segundo ramo da família ambiental de riscos associados com transgênicos tem estreito parentesco com o primeiro. Se transgenes escapam para parentes silvestres, alguns destes certamente se qualificam como ervas daninhas, ou seja, plantas que emergem no campo cultivado e prejudicam o rendimento da plantação.
- Ora, a tolerância a herbicida (como o glifosato, mais conhecido pela marca Roundup) é a modificação genética mais empregada no planeta em cultivos como o de soja, milho, canola e arroz, ocupando 68% (69,9 milhões de hectares) dos 102 milhões de hectares de agricultura transgênica no mundo, segundo dados do ISAAA (Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Agrobiotecnológicas) em Situação global da comercialização das lavouras GM: 2006.
Nos locais onde houver parentes silvestres dessas plantas que sejam considerados ervas daninhas, como o arroz vermelho do Rio Grande do Sul, a transferência horizontal do transgene que confere tal característica pode dar origem a ervas daninhas impossíveis de aniquilar com o herbicida correspondente, ocasionando um problema agronômico de difícil controle.
- Um inconveniente similar é a emergência de pragas resistentes mesmo sem a transferência de genes, por mera pressão seletiva: aplicado o agrotóxico na plantação, as raras ervas que sobreviverem serão portadoras de alguma resistência ao veneno e encontrarão um campo livre para prosperar e gerar prole, exatamente como ocorre com cepas de bactérias resistentes a antibióticos.
Algo de semelhante se passa com transgênicos Bt (19% da área plantada com OGMs, além de 13% em associação com a resistência a herbicida), que selecionam linhagens de insetos — como lagartas de lepidópteros — resistentes à toxina do Bacillus thuringiensis que a planta passa a produzir após transformação genética.
- O terceiro e último gênero de dano ambiental já foi referido no caso das borboletas-monarcas: prejuízo para populações de espécies que não sejam pragas de lavouras. Para todos esses casos, invariavelmente, os defensores da agricultura transgênica acreditam haver ou ser possível desenvolver soluções tecnológicas, como a criação de barreiras de segurança entre campos de cultura com e sem transgenia, para evitar que o pólen alcance a área convencional.
Ou, então, o emprego na transgenia de pequenas variações do gene da toxina Bt, de maneira a contornar o problema da resistência, e assim por diante. A ponderação de tais riscos e das medidas preventivas, em cada caso, seria o campo por excelência da biossegurança e de órgãos como a CTNBio, que não se pronuncia sobre efeitos mais sistêmicos da biotecnologia, no plano socioambiental.
Arautos da razão:
A paralisia no debate sobre transgênicos e meio ambiente
Uma noção restrita de ciência:
- Todo o problema da polarização do debate público sobre transgênicos deriva dessa circunscrição da questão ao aspecto técnico da biossegurança. Como já foi exposto por Hugh Lacey em mais de uma oportunidade, tal circunscrição tem por pressuposto uma noção restritiva de ciência, o que chama de "pesquisa conduzida segundo a abordagem descontextualizada", incapaz de satisfazer valores cognitivos como imparcialidade, neutralidade e autonomia por descartar de antemão a pesquisa empírica sobre riscos ecológicos e sociais.
No radar dessa modalidade hegemônica de pesquisa no campo das ciências naturais, que seus praticantes e a maior parte do público tende a identificar com a ciência em geral, não aparece a preocupação acerca da dependência crescente de agricultores com relação a poucos fornecedores de sementes protegidas por propriedade intelectual. Tampouco a diminuição de populações de pássaros que se alimentem de sementes de ervas daninhas, ou de certas bactérias do solo.
- Estas não são questões somente da esfera da política ou dos valores, mas problemas abordáveis de maneira empírica — ao contrário de alguns dos pressupostos dos biotecnólogos, como o de que sua ciência descontextualizada é a única capaz de oferecer explicações "verdadeiras" sobre as coisas como elas são, ou então de resolver os desafios de sustentabilidade (como o recorrente argumento de que os inimigos da biotecnologia a impedem de erradicar a fome no mundo).
Estes, sim, são valores indemonstrados e empiricamente indemonstráveis, metafísicos mesmo, que no entanto são percebidos por muitos como descrição adequada dos fundamentos da ciência.
- Há mais, no entanto. Mesmo que não se adotem os princípios da agroecologia, há razões para descrer de que a análise e a gestão de riscos no cerne das avaliações de biossegurança sejam elas próprias atividades meramente técnicas e cabalmente confiáveis. Afinal, apesar delas os episódios de contaminação com transgenes continuam a ocorrer, como foi o caso do arroz LLRICE 601 da Bayer, que, mesmo não tendo completado o processo de testes e licenciamento nos Estados Unidos, começou a aparecer, em 2007, em lotes para consumo e exportação.
- Uma colheitadeira usada numa lavoura de soja transgênica, por exemplo, pode inutilizar uma partida de soja orgânica colhida por ela em seguida, se não for completamente descontaminada de vestígios do grão geneticamente modificado. "Análise de risco é uma atividade política, ética e carregada de valores, ponto", afirma Caruso ao resumir um relatório publicado em 1996 pelo Conselho Nacional de Pesquisa (NRC) e pelas Academias Nacionais dos Estados Unidos, Understanding risk: Informing decisions in a democratic society. "Deveria ser conduzida com a ampla participação pelas pessoas cujo destino está em jogo."
- "Os formuladores de políticas públicas precisam desenvolver regras que sejam proporcionais, eficientes, custo-efetivas e específicas para culturas e sistemas de cultivo particulares". Prossegue: "Uma iniciativa mais ampla para promover a coexistência entre cultivos GM e não-GM ainda está para ser implementada". O mesmo, na sua opinião, vale para o Brasil:
"Tal iniciativa requererá considerável planejamento e coordenação, assim como infra-estrutura. Mas é improvável que chegue logo. [...] Nem está claro, no quadro de biossegurança do país, qual órgão regulador deveria assumir a liderança no estabelecimento de um esquema de coexistência".
- O testemunho de Fontes em defesa da coexistência revela que não é monolítica nem incondicional, na comunidade científica, e nem mesmo no principal bastião da pesquisa agrícola nacional, a posição em favor dos transgênicos e contra o princípio da precaução.
A falta de clareza a respeito de um órgão regulador que ficasse encarregado de liderar o desafio empírico de criar e implementar regras que previnam efeitos sistêmicos para além da biossegurança estrita, não é preciso dizer, trabalha a favor do rolo compressor transgênico. Enquanto tais regras não vêm, ou são implantadas de maneira deficiente (como ocorre de modo usual em países institucionalmente débeis como o Brasil), a autorização da CTNBio vale como uma carta branca para o plantio indiscriminado.
- Afinal, até na ausência dessa licença os cultivos transgênicos se espalharam pelo país, como no caso da soja resistente a herbicida RoundupReady, com base no contrabando de sementes e no plantio ilegal nunca coibido.
Se, como de hábito, os representantes do agronegócio e da agroindústria tendem a enxergar nas zonas de exclusão e outras medidas de precaução simples impedimentos a seu empreendedorismo e sua busca de competitividade, secundados pelos biotecnólogos que comandam a maioria dos votos na CTNBio, de outro lado os minoritários oponentes da biotecnologia se apressam a negar a possibilidade prática da coexistência, enfatizando os casos de contaminação e desrespeito às poucas regras vigentes no setor.
- A nenhum dos campos fundamentalistas interessa, a rigor, que se encontrem soluções intermediárias e de compromisso. A reabertura e a manutenção de um terreno comum para fazer avançarem essas questões, no entanto, interessa apenas e profundamente ao restante da opinião pública, que anseia por poder voltar a confiar num sistema regulador que se oriente pelo bem comum e por uma noção mais ampla de ciência.
Um conceito ampliado, em que o conhecimento objetivo não seja reduzido exclusivamente àquelas formas que possam redundar em aproveitamento tecnológico, sem espaço para questionamentos acerca de sua sustentabilidade socioambiental, mas comportem e fomentem também pesquisas empíricas sobre limites e alternativas à agricultura intensiva tal como a conhecemos.
- A CTNBio certamente não quer e não comporta esse papel, nem parece crível que o governo federal possa liderar o processo para desfazer a polarização paralisante, pois a mesma fratura o atravessa e o agronegócio realmente existente sustenta o superávit comercial.
Aparentemente, é só da comunidade científica que pode partir o ímpeto para começar a desconstruir as controvérsias sobre transgênicos (que podem ser ruidosas, mas não carecem de fundamento). Para isso, no entanto, seria preciso que suas lideranças recuperassem a independência e deixassem de se perfilar por trás de um grupo e de uma comissão como se eles fossem os únicos arautos da razão.
Referências:
- Persley, G. J. e Lantin, M. M. (orgs.). Agricultural biotechnology and the poor: proceedings of an international conference. Washington, D.C.: CGIAR, 2000. [ Links ]
- "Transgenic pollen harms monarch larvae". Nature, vol. 399, 20/ 05/1999, p. 214. [ Links ]
- Disponível em http://www.cib. org.br/pdf/briefs_35_executive_summary.pdf. [ Links ]
- A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. Aparecida: Idéias & Letras, 2006. [ Links ]"O princípio da precaução e a autonomia da ciência". Revista Latino-Americana de Filosofia e História da Ciência, vol. 4, nº 3, jul.-set. 2006, pp. 373-92. [ Links ]
- Intervention: confronting the real risks of genetic engineering and life on a biotech planet. San Francisco: Hybrid Vigor Press, 2006. [ Links ]
- Disponível em http://www.nap. edu/books/030905396X/html/ [ Links ]
- Disponível em http://www.scidev.net/coexistence [ Links ]
Arautos da razão:
A paralisia no debate sobre transgênicos e meio ambiente