terça-feira, 12 de abril de 2016

Envolvimento e Desenvolvimento: Introdução á simpatia de Todas as Coisas

Envolvimento e Desenvolvimento: Introdução á simpatia de Todas as Coisas 

Armando Dias Mendes

Todas as formas ainda se encontram em esboço, Tudo vive em transformação: Mas o universo marcha Para a perfeita arquitetura. [...] Nada poderá se interromper Sem quebrar a unidade do mundo.
Murilo Mendes
Primeiro Movimento O homem e suas circunstâncias Para os fins deste ensaio, defino desenvolvimento como a criação de condições tendentes à produção do ser humano em sua integridade. 
  • É, portanto, um processo e o sucesso resultante. Incorpora objetivos, destina-se a certos fins. E o desenvolvimento econômico e material é visto como um elemento importante, mas em si insuficiente, para a promoção do desenvolvimento humano. 
Como envolvimento defino as articulações do ser humano com o ambiente que o cerca: seu comprometimento e os cometimentos correspondentes. E, ao falar em ambiente, não falo só do meio natural, que precede, condiciona, e afinal sucede ao homem. Falo também do ambiente que procede do homem, fruto das relações que ele entretece com o entorno e consigo mesmo. 
  • A categoria desenvolvimento é proposta como insumo e produto do amor ao próximo, ao semelhante. É o amor que não apenas move o sol e as outras estrelas, mas move, sobretudo, o ser humano em favor do ser humano o amor ao próximo como a si mesmo. 
E esse amor expressa-se de muitas maneiras, mas, em resumo, pelo atendimento às necessidades humanas: alimento, abrigo, educação, saúde, lazer, e, por fim, mas não por último, aprimoramento moral, elevação espiritual... Dar de comer e beber, vestir, instruir, justiçar, pacificar, assistir ao próximo e, mais que tudo, elevá-lo. 
  • A categoria envolvimento é sugerida como resultante da simpatia do ser humano pelas coisas que o cercam, não apenas as que provêm de suas artes & ofícios mas as que lhe foram doadas no bojo da criação, pela natureza as dotações naturais. Mas não estarei me referindo à mera fruição sentimental e sim a uma simpatia ativa, a ação de (res)guardar, acudir, (a)colher. 
A dicotomia eleita faz contrastar, no entanto, sentimentos e movimentos que, por correrem paralelos, apenas no infinito deveriam encontrar-se. Na prática, descarrilam com freqüência e entram em rota de colisão. A utopia do desenvolvimento sustentável tem a ver com a descoberta de meios e modos de evitar esses descarrilamentos.
  • Mais do que isso: tem a ver com a invenção de meios e modos de fazer com que os efeitos do uso e da usura do oikos venham a confluir harmonicamente, não catastroficamente. Mas devem afluir à meta final ainda dentro do horizonte da finitude humana, ou já não teriam sentido. 
Assumamos, pois, de partida, a definição do Nosso futuro comum: 
O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades (CMMA, 1988:46).
Nessa definição se contém, com outras palavras, o duplo comprometimento com os seres humanos e com a ambiência dos seres humanos entendidos estes como os contemporâneos e os sucedâneos. Contém-se, além disso, o reconhecimento das constrições a que os processos estão submetidos, e, portanto, das restrições impostas a seu sucesso. 
  • Para utilizar a terminologia do próprio texto oficial, a definição envolve dois conceitos-chave: o de necessidades, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, e o de limitações, impostas pela tecnologia e pela organização social atuais (CMMA, 1988:46). 
Costumo falar, alternativamente, em necessidades versus possibilidades. Mediando as duas, contestando aquelas, protestando por estas, situo as desejabilidades ou aspirações, mais ou menos controladas conforme as submetemos, ou não, a valores. Enfim, para resumir, penso que é válido, numa paráfrase de dito conhecido, chamar à boca de cena o homem e suas circunstâncias. Porque, em resumidas contas, é disto que se trata. Interlúdio Civilização: natura e cultura 
  • A natura é uma das circunstâncias humanas. A cultura é outra. O desenvolvimento somente será sustentável na medida em que sustentar, a um tempo, a natura e a cultura. A sustentação dinâmica da cultura confunde-se com o processo civilizatório, que tende a crescer e fazer-se complexo. Sua vocação é a afluência. 
A sustentação estática da natura implica, ao contrário, um retrocesso inibitório, inclinado ao congelamento econômico, à renúncia ao progresso. Encarna uma fluência tensional. E, no entanto, a confluência dos dois é o que está por trás da idéia motriz de desenvolvimento sustentável: que a inibição seja superada pela civilização, mas sem que a civilização descarrilada gere, ao fim e ao cabo, a inibição letal. 
  • É da natureza da civilização empreender, ela assenta sobre empreendimentos, empresas: descobertas, conquistas, transformações, invenções. Qualquer empresa humana consome a natureza, não a sustenta: atenta contra ela em maior ou menor grau. Mas se a natureza do mundo for destruída, já não poderá continuar a ser construída a empresa do homem. Como fugir ao oxímoro? 
Mais do que perquirir o ímpeto civilizatório, há que eviscerar o espírito que o insufla. Por que motivo o homem desenvolvido se impõe (e opõe) à natureza, se faz seu senhor de baraço e cutelo, e submete-a aos seus desígnios até quase o perecimento final da mesma? Enfim, numa paráfrase agora camoneana, digamos sábios da escritura que segredos são esses da cultura. Essa, a discussão na qual devemos agora de ternos. 

Segundo Movimento:
  • A crise e suas raízes A discussão trava-se, hoje, não só no plano técnico, mas também no plano religioso e teológico, literalmente com apelos à Escritura. Por amor à brevidade, vou passar por cima de fundamentos e fundadores do tema. Tal como se apresenta agora, o início do debate é datado. 
O que o deflagrou, há menos de trinta anos, foi a conferência de Lynn White sobre As raízes históricas de nossa crise ecológica, no bojo do encontro anual da American Association for the Advancement of Science, sintomaticamente no dia seguinte ao Natal de 1966. 
  • A tese é a de que: a ecologia humana encontra-se fortemente condicionada pelas crenças sobre nossa natureza e nosso destino, isto é, pela religião. (Rodríguez & Casas, 1994:355) Lynn White faz o percurso inevitável da investigacão sobre as diferenças entre as cristandades oriental e ocidental, esta última mais voluntarista e dinâmica; a primeira, mais contemplativa e mística.
Outros fazem a análise crítico-comparativa entre a cristandade como um todo e as religiões ou filosofias orientais. Não é o meu propósito. O meu propósito é retomar a linha de raciocínio de White, que chama São Francisco de Assis, o mais radical dos cristãos, à cena: 
De qualquer modo, apesar de [?] as raízes de nossos problemas serem em grande parte religiosas, o remédio deve ser também substancialmente religioso [...] Eu proponho Francisco como o santo patrono dos ecologistas. (Rodríguez & Casas, 1994:355) 
Em 29.11.1979 João Paulo II, com pouco mais de um ano de pontificado, declarava São Francisco de Assis padroeiro dos ecologistas. Por que uma figura histórica medieval, velha de mais de 700 anos, pode ser apresentada como nova nos nossos dias? 
  • Em que o comprometimento e o comportamento de um outsider, um marginal do século XIII, pode influir no establishment do século XXI? Em que a empatia com o santo mais popular do Ocidente pode tornar-se penhor de simpatia para com todas as coisas? Aceite-se, ad argumentandum, que a tradição judaico-cristã, no seu ramo ocidental, seja descrita como centrada na vontade do homem e por isso dominadora das circunstâncias ao redor do homem. Entre elas, o ambiente natural. Enchei a terra e submetei-a (Gn 1,28). 
A essa tradição ativa deve ser creditado (e debitado) o processo civilizatório do mundo ocidental, aliás globalizante. E a adesão a esse processo tornou-se impositiva, como única maneira de assegurar o real acesso aos direitos humanos. Abstraindo, uma vez mais, de antecipações, aliás parciais, entendo que o código mundialmente institucionalizador desse mandamento é a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948). 
O que ali se anuncia, já nos considerada, é: O advento de um mundo em que os homens gozem [...] da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade. (Apud Cançado Trindade, 1991:74). 
E esse objetivo é proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.Aspiração, portanto, à libertação do ser humano com relação a violências e carências, a alforria das agressões atuais ou potenciais contra o corpo e o espírito do homem de modo a que ele possa alcançar o livre desenvolvimento da sua personalidade. 
  • E é a isto, precisamente, que chamo desenvolvimento, ou civilização. Mas o seu preço tem sido a crescente depleção do ambiente. Já o envolvimento com o ambiente, não mais no sentido de o sujeitar, mas de o ajeitar, só veio à tona das ciências, só detonou consciências, nos nossos dias. 
E, no entanto, é mais velho que a Sé de Braga, nasceu com a mesma tradição judaico-cristã: Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar (Gn 2,15). Note-se: não apenas para o cultivar (logo: desenvolver-se como jardineiro, e desenvolver o jardim, revelando-o) mas também para o guardar (i.e.: envolver-se como ser humano e jardineiro com o jardim, velando por ele).

Terceiro Movimento Elogio da utopia:
  • A história parece apontar noutra direção. Nem sempre o jardineiro desvelou-se pelo jardim, cultivando-o pois cultivar implica restaurar, recuperar, repor. Muitas vezes, limitou-se a dispor dele, explorá-lo ad nauseam. Mas será essa uma história peculiar da civilização desenrolada à sombra da tradição judaico-cristã, segundo o lugar-comum acusatório dos últimos anos? 
Esse libelo tem sido um libelo interna corporis, no sentido de produzido dentro da própria cultura cristã, ainda quando por pensadores heréticos ou apóstatas que repudiaram suas matrizes religiosas. 
  • Uma análise menos apressada e apaixonada, que começa a surgir, permite perceber que outras tradições filosófico-religiosas engendraram comportamentos igualmente predatórios (ver, p. ex., Merino, in Rodríguez & Casas 1994:355). A nossa falta de familiaridade com a história desses povos (sobretudo no seu pretérito mais-que-perfeito) tem avalizado a avaliação assimétrica. 
Do ponto de vista prático, porém, é ainda mais atual reconhecer que a chamada civilização ocidental caminha para a planetarização, sobretudo nos aspectos materiais e dessacralizadores. As duas revoluções industriais, complementadas pela revolução tecnológica, respondem por isso. 
  • A maré montante da afirmação dos direitos humanos exacerbou o afã humano no cultivo do jardim, por sobre a atenção em fazer-se cativo dele. De qualquer modo, é defensável sustentar que o mote da primeira narração da criação (Gn 1,28) tem prevalecido no nosso mundo sobre o da segunda narração (Gn 2,15) em especial, a partir do advento da sociedade industrial. 
Com esta me haverei daqui por diante. O primeiro mandamento universal, portanto, o do desenvolvimento, predominou sobre o segundo, o do envolvimento. Cuidou-se dos direitos dos habitantes. Descuidou-se dos valores do habitat. Nesse jogo, hábitos sociais (p. ex., o consumo e seus insumos), garantidores dos direitos, foram (con)sagrados. 
  • O jogo sobre a natureza fez-se sentir por forma cada vez mais extensa e intensa cada vez mais tensa. Desse jugo é que começamos a tentar libertar-nos hoje em dia, anunciando o segundo mandamento universal em pauta. E isso se faz com a iluminação das limitações denunciadas. Na verdade, essas limitações são muito mais amplas e diversificadas. 
São limitações dependentes do estádio tecnológico e social, como ressalta o Nosso futuro comum, mas são também inerentes à própria natureza das coisas: esgotáveis, perecíveis, inviáveis. Ou, mesmo: saciáveis; noutros casos, insaciáveis. Tecnicamente, economicamente, ecologicamente, eticamente, há vetos essenciais ou circunstanciais ao seu uso, intransponíveis. 
  • Então é preciso defender algumas dessas coisas, é defeso continuar ofendendo-as, sob pena de dilapidarmos um patrimônio sujeito à finitude. De outras coisas, devemos nós defender-nos. Abstraia-se, uma vez mais, de precoces profetas e profecias. O segundo mandamento, que (cor)responde a essa percepção, penso eu que somente na Conferência Rio-92 veio a instalar-se nos cânones dos povos da Terra. Sua carta de princípios é a Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento não gratuitamente mais conhecida como Carta da Terra. 
Seu programa de ação é a Agenda 21. Mas sua regra básica está na Convenção sobre a diversidade biológica, ao proclamarem-se as partes contratantes cônscias do valor intrínseco da diversidade biológica e dos valores ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da diversidade biológica e seus componentes. (UNCED, 1992b: Preâmbulo) 
  • O que a confissão ressalta é o jogo entre o valor intrínseco da biodiversidade e os seus numerosos valores extrínsecos: valores de uso, de troca... Ousaríamos dizer que está aí o anúncio da equivalência do lado fútil do habitat, modernamente desconhecido, perante o seu lado útil, sempre reconhecido. Agora, o jogo está empatado, o jugo da utilidade sobre a futilidade foi superado. 
A Carta da Terra, sem ab-rogar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aglutina: Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. (UNCED, 1992a: Princípio 1) 
  • E o conceito-chave é: harmonia. Os direitos do homem foram reafirmados, por via da condensação contida nos termos vida saudável e vida produtiva. Entenda-se: saúde física e mental, corporal e psíquica, psicossomática mens sana in corpore sano. 
Entenda-se, também: produção (co)respondente às necessidades materiais e espirituais do ser humano. Mas tudo em interação com a natureza, ludicamente, num jogo equilibrado, isento de jugos. Essa, em suma, não exatamente uma resposta (revanche, vingança) mas uma aposta na convergência dos divergentes. A superação da paradoxia, a reparação da ortodoxia. Utopia? 
  • Com certeza. Loucura? Talvez. Mas, sem a loucura, que é o homem/mais que a besta sadia/cadáver adiado que procria?. Atente-se que a Carta da Terra, conscientemente ou não, põe o acento na vida produtiva, não na capacidade reprodutiva da vida. 
Produzir quer dizer criar, mais do que mecanicamente procriar ou reproduzir. Vida produtiva significando, pois, vida criadora, o que tende a satisfazer as inspirações mais profundas, as aspirações mais elevadas do ser humano. E, ainda assim, numa linha de respeito às circunstâncias naturais lá no mais íntimo do imo destas. 
  • Aquela, por conseguinte, é uma loucura que começa a fazer escola, e o reconhecimento da existência dos dois mandamentos universais nos bastidores do cenário utópico do desenvolvimento sustentável começa a ser expresso, não apenas nos escritos da comunidade política internacional, mas também nos da comunidade científica (CNPQ & CYTED/1993:36-43). 
Ergo: o homem é alçado à condição de co-criador das próprias circunstâncias naturais, a par de criador das culturais. Deixa de ser um melancólico procriador moribundo.

Quarto Movimento:
As dores do parto da salvação:
  • O homem já começara a ser visto como co-criador antes, até, da Rio-92, em certas linhas de reflexão teológica cristã, que todavia segue ganhando corpo. Registro aqui, exemplificativamente, uma tomada de posição recente da Igreja no Brasil. Antecedendo a Conferência, a CNBB promoveu seminário sobre Ecologia e Desenvolvimento, que documentou (CNBB, 1992). Da crítica do projeto civilizador (ou civilizacional) em curso (op. cit.:15-24), da autocrítica das tradições judaico-cristãs (id.:35-8), o texto passa a fazer uma releitura do Gênesis. 
Nela, a coroa da criação já não é o homem, e sim o sábado (id.:39), depois que na véspera Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom (Gn 1,31). É que, a seguir: Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou de toda a sua obra de criação. (Gn 2,2-3) 
  • Para Deus, portanto, tudo era muito bom e esse tudo compreendia Adão e Eva, e os peixes do mar, as aves do céu, os animais que rastejam sobre a terra, as ervas que dão semente e todas as árvores que dão fruto, bem como, para arrematar, o céu e a terra com todo o seu exército (de seres) (Gn 1,28-30; 2,1). Vale dizer: a humanidade nascente e a maturidade ambiente. 
Por isso, Deus descansou, substituindo o trabalho pela celebração, e esse foi o coroamento de sua obra. Mas a Deus só foi dado descansar e comemorar, porque já antes confiara ao homem a responsabilidade de continuar a sua obra. 
  • Ao mandá-lo cultivar e guardar a terra, conferira-lhe o múnus de co-criador do cosmos, num processo que a CNBB chama, com outros, de criação continuada (CNBB, 1992). Essa posição implica a recusa a chancelar a tese da total transcendência de Deus em relação à criação. 
Retomando a pergunta de Santo Agostinho: 
O que faz Deus desde toda a eternidade?, o documento prefere afirmar com os místicos que desde a eternidade, Deus está dando à luz a sua criação, e ainda hoje dela participa (CNBB, 1992:40). Deus habita nela, na forma do espírito vivificador a criação (a natureza, se quiserem) é, então, o lugar da morada do próprio Deus e ao mesmo tempo máscara que O revela e oculta (id.:41). 
Deus habita o nosso habitat. Deus é residente nas suas criaturas. Nós somos morada de Deus. Nós, criaturas, somos o oikos do criador do oikos. Claro, não é uma esdrúxula adesão tardia ao panteísmo, a natureza não está sendo ressacralizada. 
  • O que o texto quer dizer, bem ao contrário, é que todos os seres da natura são distintos de Deus. Eles são, como obra de Deus, criaturas iguais ao ser humano, que desde o façamos (no plural, porque era Deus trino na ação de criar o homem (Gn 1,30)) trazia consigo as potencialidades de um ser cultural. 
É que ele deveria dominar, mas também cultivar e guardar, logo: transformar a terra, transformando-se a si próprio, superando a sua condição original de ser natural. O ser humano, assim, é igual a cada um dos seres naturais que compunham as circunstâncias fundamentais do homem (o oikos), compondo todos eles, em conjunto, a totalidade dos seres criaturais. Criaturais, porque referidos ao criador, sem o qual a totalidade dos seres não se pode apreender (ecologia), nem empreender (economia), e muito menos compreender (ecomenia). 
  • E se não mais podemos ver no homem o centro da criação, nem assim podemos deixar de descobri-lo centro de perspectiva e centro de evolução do Universo, como indica Teilhard de Chardin (Teilhard, 1955:26-27). Ou, ainda, eixo e flecha da evolução (id.:30). 
E nessa perspectiva tudo é, ou deveria ser, muito bom, também para todos e cada um dos homens. Fica, portanto, à mesma feição, excluído o maniqueísmo: o antropocentrismo exagerado do homem moderno (CNBB, 1992:41) torna-se anátema. Mas o texto não promove a inversão do sinal, que levaria a abençoar o jugo da natureza sobre o ser humano algo como reduzir o homem à precária condição de inteligente instalada na epiderme de Gaia (Lovelock, 1991:148). 
Eis que os seres da natura e os seres da cultura, exalçados à condição de seres criaturais, são conjuntamente objeto de salvação, segundo a palavra do Apóstolo dos gentios: Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. [...] Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós [...] (Rm 8, 19.22-23) E aqui volta à cena Francisco Bernardone. 
Quinto Movimento:
Nossa irmã, a mãe terra:
Francisco Bernardone, São Francisco de Assis, um dos maiores escultores da alma e do espírito da história européia (Scheler, 1943:124) empreendeu o memorável ensaio de dar unidade e trazer para a síntese em um processo vital a mística do amor omnimisericordioso, acosmístico e pessoal, [...] juntamente com a unificação afetiva vital-cósmica com o ser e a vida da natureza. (Op. cit., id.).
Com igual ênfase, um dos mais reputados biógrafos de Francisco fala dele como uma das personalidades mais poderosas, singulares e originais que a história humana conheceu. (Chesterton, 1952:416) O pobrezinho viveu em santidade algo como um quarto de século, ou menos. 
  • E, no entanto, tornou-se um dos santos que abalaram o mundo: Foram anos de realização humana, mais verdadeiros e mais completos do que qualquer outro [período], em outras vidas humanas antes ou depois. Porque na existência terrena de Francisco um laço comum de alegria dissolveu todos os contrastes e todas as contradições. 
O mundo interior e o exterior; o homem e a natureza; o pensamento e a ação; a humildade e o poder; a renúncia e a abundância; todos se fizeram para unir-se. (Fulop-Miller, 1993:134) Para o demagogo divino todas as criaturas de Deus são irmãs entre si. Não apenas os seres humanos, não apenas os seres vivos, mas também o sol, a lua, a água, o fogo... 
  • Desse modo leva a cabo uma expansão da emoção especificamente cristã do amor a Deus como Pai e ao irmão e próximo em Deus, a toda a natureza infra-humana; e ao mesmo tempo leva a cabo ou parece levar a cabo uma elevação da natureza até a luz e o brilho do sobrenatural. (Scheler, 1943:125) 
Daí que Scheler se veja obrigado a perguntar se isso não se constituía uma grave heresia se não uma heresia do intelecto, ao menos uma grave heresia do coração. Mas reconhece que deviam existir razões muito profundas para que a atitude do santo não fosse tomada assim, embora se mostrasse fundamentalmente nova frente a todos os tempos anteriores (Scheler, 1943:125). 
  • O autor do cântico das criaturas, mais conhecido como Cântico do Sol, ou Canticum Fratris Solis, não as celebrava num contexto simbólico, não as usava como parábolas que deveriam ilustrar ensinamentos para os homens: 
Isto, mais do que tudo, é o novo, o desusado, na relação emocional de São Francisco com a natureza: que as coisas e os processos naturais ganham um sentido expressivo próprio sem relação parabólica com o homem nem em geral com as coisas humanas; 
que também o Sol, a Lua, o vento, etc., que em rigor não necessitam para nada de um amor solícito ou misericordioso, são vividos e saudados pela alma como irmão e irmãs: que as criaturas estão referidas em metafísica solidariedade (e simplesmente com a inclusão do homem) de um modo imediato a seu criador e Pai, como seres existentes por si e de um valor inteiramente próprio (em relação ao homem): isto é o novo, o surpreendente, o raro, o antijudeu em sua atitude. (Scheler, 1943:127)  Aí está o novo também para nós, proclamado na Rio-92: o valor-em-si da natureza ou da criação, circunstancial ao homem. Circunstancial mas... familial. 
Ora, bem. Em nenhum momento Francisco se afasta da ortodoxia. Mas, surpreendentemente, casa o ato redentor sobrenatural de Cristo com um repetido encarnar-se e viver em Deus Pai na natureza como um prolongamento dinâmico, análogo ao sacrifício de Cristo, da criação por obra da qual mora em verdade em todas as criaturas uma vida divina. (Scheler, 1943:130) 
  • Tornam-se as criaturas, desse modo, verdadeiros sacramentos naturais (Scheler, 1943:130). Sacramento = sinal sensível da graça de Deus. Graça = dom, doação, donativo algo que se recebe... gratuitamente. Toda a criação captada como um ato gratuito de Deus, que tendo constatado que tudo era bom, descansou passando ao homem o haver e o dever da (re)novação do oikos.

Envolvimento e Desenvolvimento: Introdução á simpatia de Todas as Coisas 

Intermezzo:
A ecologia da criação A questão ecológica vem sendo abordada, está-se a ver, em torno dos três traços das tradições religiosas: 
  • A qualidade religiosa da natureza; 
  • A unidade de todos os seres da natureza; 
  • Os mandamentos sobre os cuidados com a natureza não-humana (Hilpert, in Eicher, 1993:205). 
Tudo isso leva, como o faz Jürgen Moltmann, a aproximar a doutrina da casa (oikos-logus = ecologia) da doutrina da criação uma vez que Deus habita a sua criação e as suas criaturas (Moltmann, 1993:11). 
  • Habita-as no ato de criar e no fato de descansar. A transcendência torna-se imanência, e a sua eminência está na Encarnação. Por essa via, opõe-se à relação unilateral de domínio, inerente à condição de um Deus monoteísta (rigidamente transcendente, incomunicável, cujo nome não pode ser pronunciado),uma relação variada e multiforme de comunhão (Moltmann, 1993:18), própria da forma trinitária Pai, Filho e Espírito Santo. 
Um Deus do qual Chesterton chega a afirmar que é também Ele um concílio, uma sociedade. Também para Deus, e não somente para o homem, não é bom estar só (Chesterton, 1956:235-236). E essa relação trinitária se estende a toda a criação. Nela não há apartheids, nem excluídos. 
  • Moltmann procura, por essa vereda, desenhar uma doutrina ecológica da criação (1992:17 e segs.), partindo de uma imaginação messiânica do futuro (id.:21): Esta está orientada para a libertação das pessoas, para a satisfação da natureza e para a salvação da comunhão entre pessoa e natureza das forças do negativo e da morte. (Id.:22). 
Por outras palavras: para libertar o ser humano do temor e da necessidade, mas em harmonia com a natureza. Não é assim que falam as Tábuas da Lei da ONU?

Sexto Movimento:
  • A herança do jogral de Deus Voltemos a Lynn White. A sua perturbação de espírito de intelectual consciente lhe dizia ser preciso enfrentar a crise visitando as suas raízes religiosas re-ligare tornava a ser necessário. Ousei procurar, tateando, um método para chegar lá. Valeu a pena? 
Sempre vale, se a alma não é pequena. A alma do Poverello não era pequena: a tudo abarcava. Por isso, volta a abalar o mundo. Francisco, imitatio Christi, imitouo em obras e imitou-o, em especial, na celebração, na alegria e no louvor ao seu Deus, assim como na comunhão com o ambiente, com as circunstâncias de lugar, de matéria e de pessoas com que praticou a convivência. Reconciliou-nos com a natureza, mas sem submissão a ela. 
Reconciliou-nos com o próximo, mas sem servidões. Fraternalmente, num caso e noutro, já que todos somos criaturas do mesmo criador. Francisco foi o fiel jardineiro do testamento genesíaco. Esse, o homem do qual já se disse que pode ser descrito como se fora [...] o único democrata do mundo completamente sincero. (Chesterton, 1956:361)  Pois, para ele, todas as criaturas eram rigorosamente iguais perante o seu criador comum. Além disso, o Irmãozinho: Era, entre outras coisas, enfaticamente o que chamamos um caráter [...]. Não era unicamente um humanista, senão também um humorista: um humorista especialmente segundo o antigo sentido inglês: um homem que anda sempre de bom humor, seguindo seu caminho e fazendo o que ninguém mais faria. (Chesterton, 1956:416) 
Um excêntrico, em síntese, quando medido pelo estalão das circunstâncias daquele momento e lugar e ainda pelo estalão do aqui-e-agora. Um asceta, porém um enamorado do ser humano e de suas circunstâncias, bem como do criador de todos e de tudo. Um furacão, e ao mesmo tempo um homem cortês para com tudo e todos, atencioso, humilde. 
Capaz, até, de levantar-se para saudar o tição com que lhe iam cauterizar a vista quase cega: Irmão Fogo: Deus te fez belo, poderoso e útil [...]. Sê amigo meu nesta hora, sê delicado, porque eu sempre te amei no Senhor. (Apud Tomás de Celano, in Silveira & Reis, 1991:405)
Mais: era um poeta, quer dizer, um homem que podia expressar a sua personalidade (Chesterton, 1952:468). Foi um poeta e revolucionou a poesia, as artes, a ciência e a sociedade. Abalou o mundo. Mudou a história: seu aparecimento assinalou o momento em que os homens podiam reconciliar-se não somente com Deus, senão também com a Natureza, e, o que era mais difícil, consigo mesmos; o momento em que o velho paganismo que envenenou o mundo antigo se extirpava, por fim, do coração humano. (Chesterton, 1952:468) 
  • O louco de Cristo acabou proclamado como o primeiro poeta italiano, modelo direto de vates como Dante, Petrarca e Tasso. Os historiadores da arte vêem nele a fonte espiritual de Giotto e de todos os pintores da natureza. Seu Cântico do Sol, composto no leito de morte, inspirou multidões e alimentou movimentos sociais. 
Sua Ordem Terceira, motivando leigos e desapegando-os dos valores terrenos, contribuiu para libertá-los da sujeição a senhores e, portanto, para a destruição da ordem feudal. Discípulos seus, entre eles Roger Bacon, estão entre os fundadores da moderna ciência. Ele, Francisco Bernardone, que não foi um intelectual, escritor, cientista, nem filósofo ou teólogo, mas apenas o irmão menor da criação.

À Guisa de Contraponto:
Ora et labora:
  • Talvez se possa dizer, para encerrar, que Francisco melhor cumpriu o mandamento inaugural da história no tópico guardar do que no tópico cultivar. E, no entanto, pelos efeitos de seu exemplo, ninguém menos utópico. De qualquer modo, a casa de Deus tem muitas moradas. 
Se tempo e capacidade houvera, fora pertinente comparar a ação do espírito franciscano com a do espírito beneditino. São Bento de Nursia foi, também ele, fiel mandatário do autor do Gênesis, mas com ênfase no tópico cultivar. A regra de São Bento ora et labora transformou a Europa, assentando nela alguns dos fundamentos da sua civilização. 
  • Os beneditinos e seus irmãos cistercienses e trapistas souberam cultivar o jardim herdado. Secaram pantanais, transformando-os em sítios de lavoura e pasto, humanizaram bosques, canalizaram rios, aproveitaram a força hidráulica, recuperaram terras abandonadas. 
Em resumo: trataram o ambiente de modo a retirar dele o sustento das populações, mas sustentando o próprio ambiente. Utilizaram intensamente a terra, mas em contenção, mantendo a sua fertilidade. Foram ecologistas práticos (ver, p. ex., Merino, in Rodríguez & Casas, 1994:357; Spinsanti, in Fiores & Goffi, 1989:297-8). 
  • Em 1964 Paulo VI fez de São Bento padroeiro da Europa. A esse dueto é que René Dubos chama de dialética entre a conservação franciscana e a organização beneditina. Palavras suas: O apaixonado respeito contemplativo de Francisco de Assis diante da natureza vive ainda hoje na consciência da afinidade existente entre o homem e todas as coisas vivas e no movimento para a conservação do ambiente natural. 
O respeito, porém, não basta, porque o homem jamais foi testemunha passiva. Ele muda o ambiente com sua própria presença e as duas únicas alternativas possíveis de sua relação com a terra são a destruição ou a construção. 
  • Para ser criador, o homem deve aproximar-se da natureza com os sentidos, além de com a sensatez: com o coração, além de com a experiência. (Apud Spisanti, in Fiores & Goffy, 1989:298) Seria temerário afirmar que esse é o nó górdio que ata os cristãos hodiernos? 
Por um lado, esforçamo-nos por uma ordem social capaz de garantir para todos os seres humanos os frutos da riqueza que precisa ser (re)produzida, como base material indispensável à prática dos direitos humanos. Somos, de certo modo, beneditinos. 
  • Por outro lado, continuamos a ver a riqueza como intrinsecamente má, e os métodos para construí-la, quase sempre, condenáveis melhor renunciar a ela e a seus frutos. Somos, nesse aspecto, franciscanos. Simplificação grosseira, sem entretons, de um grave dilema? Por certo. 
Mas redução própria, ainda assim, para extrair das entranhas do ser humano a raiz mais penetrante de suas angústias. Onde a bússola para encontrar o norte de um autêntico desenvolvimento, capaz de colocar a riqueza a serviço do homem comum, utilizada mas não idolatrada por homem nenhum? 
  • Onde o astrolábio orientador de um correto envolvimento, capaz de tornar o ambiente um legítimo parceiro de seu ocupante mais consciente, por ele cultivado com respeito natural, mas jamais cultuado com reverência sobrenatural? 
Prolongação do Contraponto:
Ad majorem Dei gloriam:
  • Já houve quem convocasse à liça um outro grande santo, daqueles que abalaram o mundo no seu tempo. Schumacher foi buscar no fundamento dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, a resposta a essa indagação: 
Desafortunadamente, não existe unanimidade sobre o que constitui um ponto de vista cristão quando se trata de questões tão mundanas como a nossa vida econômica. Portanto, recorrerei ao que um grande santo cristão chamou O Fundamento. 
Eis o que ele disse:
O homem foi criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor, a fim de assim salvar a sua alma; e as outras coisas da Terra foram criadas para o homem, para ajudá-lo na consecução do fim para o qual ele foi criado. De onde se segue Que o homem deve fazer uso dessas coisas só na medida em que o ajudem a alcançar o seu fim, E que deve afastar-se delas só na medida em que o prejudiquem [a alcançar o seu fim]. 
O pronunciamento é eminentemente realista se o aplicamos à atual situação econômica mundial. Implica que ali onde os indivíduos não têm meios suficientes para alcançar seus fins, deverão ter mais; e onde têm mais do que suficiente, devem afastar-se do excedente. (Schumacher, in Daly, 1989:137-8). 
Tradução: todos precisamos ser atendidos, física e espiritualmente, mas todos devemos ser sóbrios, ascéticos. E, com certeza, o Nosso futuro comum não disse melhor. 
  • O que o estudo de Schumacher destaca é o fato, supostamente trivial, de que a economia, na escala humana, deve servir às pessoas, e não os seres humanos servirem à produção, ou ao capital, ou às coisas. 
E isto só se consegue com base numa correta perspectiva cristã, dentro da qual se alude ao homem como filho de Deus, não ao homem como um animal superior (Schumacher, in Daly, 1989:146) porque então ele encolheria à condição de mero ser natural. 
  • Numa perspectiva cristã, o homem teria sido abolido, enquanto ser cultural. Contra a provável abolição do homem, a partir de um naturismo exacerbado (reação simétrica ao antropocentrismo exagerado), têm se levantado algumas vozes eminentes. C. S. Lewis é uma delas. Em texto velho de quase meio século (assim como o que acabei de citar), e por isso muito antes da onda ecológica que varre o mundo, já ele publicava um ensaio sobre o tema. 
E o que procurava mostrar era que a redução do homem à condição de natureza acaba resultando na dominação de seres humanos sobre seres humanos. E nem é diferente o resultado do suposto poder do homem sobre a natureza, na prática, um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a natureza como instrumento (Lewis, in Daly, 1989:185). Sustenta: 
  • A natureza humana será a última parte da natureza a render-se ao homem. (Id.:187). Mas, os homens que resultarão dessa manipulação... não são homens de nenhuma maneira, são artefatos. A conquista final da humanidade resultou ser a abolição do homem. (Id.:189). Por outro lado, contudo, no momento da vitória do homem sobre a natureza encontramos a toda a raça humana sujeita a um punhado de seres humanos que, a seu turno, estão sujeitos àquilo que em si mesmos é puramente natural: seus impulsos irracionais [...] 
A conquista da natureza pelo homem acaba sendo, no momento da sua consumação, a conquista do homem pela natureza. (Id.:190). Como escapar à armadilha? A novidade que Santo Inácio nos traz é o poder da vontade se construída sobre aquele Fundamento, isto é, se aplicada à construção do Reino. Uma incursão maior por esse campo desviaria este ensaio da trilha central tão arduamente aberta. Quedemo-nos, pois, aqui. 
  • O homem moderno, servo da riqueza, volta-se para Francisco, o irresponsável servo de Deus, em busca do outro lado de sua (con)formação, que não é natural somente, mas é também sobrenatural excede a natureza. E esse caminho exige muita força de vontade, à maneira de Inácio, e essa vontade conduz a muito trabalho, no estilo de Bento. 
Mas Francisco, posto historicamente entre os dois, também simbolicamente edifica a ponte que liga os primórdios da Idade Média aos primórdios da Idade Moderna com a santa e despreocupada alegria de quem tudo confia ao Provedor do universo. É correndo nesses trilhos que fecho esta meditação.

Finale: Sétimo Movimento:
A simpatia de todas as coisas:
  • O que pretende dizer toda a argumentação até agora brandida contra o vento: que a sociedade industrial é, necessariamente, mais beneditina que franciscana? Não: o que está sendo condenado é a falta de equilíbrio entre os dois capítulos do mandato edênico. 
É preciso cultivar ou o próprio jardim se deteriora... naturalmente. Isto no-lo demonstraram, pragmaticamente, os seguidores de São Bento. Mas estamos (re)aprendendo hoje que, se não soubermos resguardá-lo das agressões do próprio jardineiro, o cultivo torna-se autodestrutivo. Nem sempre o jeitoso jardineiro é um guarda zeloso. E nada garante que o vigia atento seja um competente agricultor. 
  • Na verdade, pois, a regra de São Bento tem sofrido uma ruptura: este homem ora; aquele outro, labora. A unidade essencial da pessoa humana requer a reintegração no diretório inaugural: laborar, operar, criar e ao mesmo tempo contemplar, louvar, comungar. Impossível? Impossível, não: imprescindível. O de que se cuida, na história, aos trancos e barrancos, é da invenção continuada de uma pátria, a edificação do lar comum, no chão comum. Eixo. 
A elevação de uma casa, capaz de sustentar-se a si própria. Logo: capaz de manter-se de pé, incessantemente restaurada, como edifício material; nutrida, louçã e viçosa, como organismo vivo; consciente, dotada de esperança e futurível, como reinado do espírito. Uma barisfera material; uma atmosfera cultural; e principalmente uma noosfera hominal. 
  • Mais do que um atributo do habitat: um produto do habitante, um insumo dos seus hábitos. O homem assumindo a agenda da evolução. Flecha. É esse um modo de ser essencialmente beneditino, ativo? Ou francamente franciscano, contemplativo? Ou resulta do toque inaciano, volitivo? É, sim, um projeto completamente cristão, com certeza, porque essa cosmovisão (leia-se: ecovisão) harmoniza, (re)concilia os atos da criação continuada com os da comunhão irrestrita. Criação agora intermediada pelo ser humano. 
Comunicação infinita da criação ininterrupta. Comunicação criadora fundada e mantida pelo fato de que o oikos cósmico não é apenas a casa ou pátria do homem e das demais criaturas, mas também a do criador:
Então, estabelece-se, finalmente, a verdadeira comunhão das criaturas entre si: uma comunhão que foi caracterizada pelas tradições do judaísmo e do cristianismo como a simpatia de todas as coisas: os laços do amor, da participação, da comunicação e das múltiplas correlações determinam a vida da criação única e unificada no Espírito cósmico. (Moltmann, 1993:22) 
Sim, tu amas tudo o que criaste, não te aborreces com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito, E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria a sua existência se não a tivesses chamado? Mas a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigo da vida! Todos levam teu espírito incorruptível! (Sb 11,14-26; 2,1)

O Cântico do  Irmão Sol:
1 Altíssimo, onipotente, bom Senhor
1 Teus são o louvor, a glória, a honra
1 E toda a bênção.
2 Só a ti, Altíssimo, são devidos;
2 E homem algum é digno
2 De te mencionar.
3 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Com todas as tuas criaturas
2 Especialmente o senhor irmão Sol,
2 Que clareia o dia
2 E com a sua luz nos alumia.
4 E ele é belo e radiante
2 Com grande esplendor:
2 De ti, Altíssimo, é a imagem.
5 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Pela irmã Lua e as Estrelas,
2 Que no céu formaste claras
2 E preciosas e belas.
6 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Pelo irmão Vento,
2 Pelo ar, ou nublado
2 Ou sereno, e todo o tempo,
2 Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
7 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Pela irmã Água,
2 Que é muito útil e humilde
2 E preciosa e casta.
8 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Pelo irmão Fogo 2 Pelo qual ilumina a noite.
2 E ele é belo e jucundo
2 E vigoroso e forte.
9 Louvado sejas, meu Senhor,
2 Por nossa irmã a mãe Terra,
2 Que nos sustenta e governa,
2 E produz frutos diversos
2 E coloridas flores e ervas.
10 Louvado sejas, meu Senhor,
10 Pelos que perdoam por teu amor.
10 E suportam enfermidades e tribulações.
11 Bem-aventurados os que as sustentam em paz.
10 Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
12 Louvado sejas, meu Senhor,
10 Pela nossa irmã a Morte corporal.
10 Da qual homem algum pode escapar.
13 Ai dos que morrerem em pecado mortal!
10 Felizes os que ela achar
10 Conforme à tua santíssima vontade,
10 Porque a morte segunda não lhes fará mal!
14 Louvai e bendizei a meu Senhor,
10 E dai-lhe graças,
10 E servi-o com grande humildade.(Silveira & Reis,1991:70-2)
Advertência:
  • Seria um ensaio. É pouco mais do que um roteiro, quiçá erradio, para um ensaio futuro. Faltaram-me tempo e meios para obra de maior fôlego. 
Sua maior utilidade será, talvez, a de chamar a atenção dos estudiosos do desenvolvimento sustentável para questões cruciais, usualmente postas à margem. Agora, compete-me indicar alguns condicionamentos, ou circunstâncias, do escrito e da forma como foi escrito. Retomo, e retoco, neste papel, muitas coisas que andei dando à luz nos últimos anos (ver Fontes próprias). 
  • Não faço remissões específicas a elas. Mas repercuto o clima, e, sobretudo, procuro dar alguns passos adiante, significativos. A angústia do tempo não permitiu recorrer a algumas fontes originais pouco expostas. O artigo de Lynn White é invocado a partir de transcrições parciais de terceiros. 
Do mesmo modo o livro de René Dubos. E não dispus, apesar das tentativas feitas junto a fontes eclesiásticas (mas no muito curto prazo, registrese), do inteiro teor dos decretos papais de proclamação da função protetoral de São Bento de Nursia e São Francisco de Assis. 
  • Os outros estudos a que recorri, de forma mais ou menos aleatória, são enunciados adiante (ver Fontes consultadas) Anote-se, por fim, que as citações dos textos escriturísticos reproduzem a versão de A Bíblia de Jerusalém (São Paulo, Paulinas, 1991). 
Além disso, o leitor atento terá surpreendido, aspeados ou não, ditos e expressões poéticas de (por ordem alfabética, não de entrada em cena): Camões, Dante, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Murilo Mendes (ver Fontes de apoio). 
  • Manoel de Barros, inclusive, ao precisar que o poema é antes de tudo um inutensílio, captou bem, e por antecipação (privilégio dos poetas) o espírito por trás do (con)texto. Mas também anotou que as coisas que não levam a nada têm grande importância. 
Exatamente: as coisas fúteis disputam, por vezes, com as úteis como queríamos demonstrar. Já Ortega y Gasset comparece por vias transversas, ao ter ampliada a sua assaz citada expressão: Eu sou eu e minhas circunstâncias (Ortega y Gasset [1914] apud Julián Marías, 1952:398). 
  • Todos somos produto próprio e das circunstâncias, logo... Os colchetes usados no interior de algumas transcrições contêm anotações minhas. No mais, é confessar as limitações, aliás visíveis, de quem, não sendo oficial do mesmo ofício, foi obrigado a incursionar por territórios privativos de outros profissionais. 
E essa acaba sendo, paradoxalmente, a única forma de tentar me manter nos territórios a que as minhas circunstâncias me acostumaram: os da ecologia, da economia, da ética ecumênica, sobretudo a partir do observatório amazônico. O oikos, nós o vimos, a tudo abrange. Inevitável mergulharmos, ainda que canhestramente, nessa largueza de horizontes... amazonóicos, salvo seja o neologismo. Brasília, junho de 1994.

Fontes Consultadas:

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Envolvimento e Desenvolvimento: Introdução á simpatia de Todas as Coisas