Mudanças de Paradigma e Desenvolvimento Sustentado
Geraldo Mário Rohde
- O século XX produziu eventos extraordinários na teoria do conhecimento e nos paradigmas científicos. Seu início foi marcado pela invasão das desordens nas ciências ditas duras (ou ainda, deterministas, termodinâmicas etc.) e a inclusão das noções de probabilidade, incerteza e risco em diversas disciplinas.
O findar de nosso século assiste ao definhamento do paradigma cartesiano-newtoniano, substituído por uma visão de mundo integradora, sística, conjuntiva e holística. O mundo mecanicista-euclidiano é hoje uma metáfora de museu, uma ideologia que só se sustenta pela força gerada pela tecnociência instrumentalizadora, utilizada pelos detentores do poder político.
- As chamadas ciências ambientais se espremem em vazios epistemológicos entre as ciências naturais e sociais, adjetivam disciplinas existentes e provocam a necessidade da interdisciplinaridade. Mesmo dentro da estreita visão economicista atual é perfeitamente possível discernir quatro fatores principais que tornam a civilização contemporânea claramente insustentável a médio e longo prazo: crescimento populacional humano exponencial;depleção da base de recursos naturais; sistemas produtivos que utilizam tecnologias poluentes e de baixa eficácia energética; sistema de valores que propicia a expansão ilimitada do consumo material.
Os cientistas que estudam o meio ambiente podem apontar fatos ainda bem mais graves e profundos sobre o sistema atual, insustentado, decorrente do dogma fundamental da teoria econômica vigente, a saber, o crescimento econômico a qualquer custo: o crescimento contínuo e permanente em um planeta finito; a acumulação, cada vez mais rápida, de materiais, energia e riqueza; a ultrapassagem de limites biofísicos; a modificação de ciclos biogeoquímicos fundamentais; a destruição dos sistemas de sustentação da vida; a aposta constante nos resultados da tecnociência para minimizar os efeitos causados pelo crescimento.
- A passagem do atual mundo desintegrado para um em que o desenvolvimento seja sustentado (com sua implícita melhoria da qualidade de vida) exige radical migração da situação presente de insustentabilidade planetária para outro modelo civilizatório. Semelhante transição depende, em grande parte, de mudanças profundas na teoria do conhecimento e nas ciências em geral.
Além disso, os princípios, premissas e pressuposições básicas das ciências seus paradigmas, enfim têm sinalizações muito importantes em termos de direcionamento da abordagem econômica de uma sociedade sustentada.
- Desta maneira, a investigação das fronteiras das ciências, suas teorias e seus novos paradigmas emergentes constituem tarefa básica, premissa fundamental para determinar a nova visão de mundo necessária para realizar o pretendido desenvolvimento sustentado (Ely, 1992).
Uma vez que a situação de insustentabilidade foi baseada e é conseqüência, em grande parte, de paradigmas ultrapassados:
- Cartesiano-newtoniano causalista;
- Mecanicista-euclidiano reducionista;
- Antropocentrista.
Mudanças de Paradigmas:
- A abordagem das mudanças de paradigmas como objeto de investigação, tal como foi realizada no clássico A estrutura das revoluções científicas (Kuhn, 1975) é tarefa desenvolvida por vários autores, que estendem o conceito de paradigma como escala de cosmovisão, incluindo questões sociais e políticas.
Dentre os vários trabalhos que tematizam as mudanças de paradigmas, destacam-se pela fundamentação possível da questão da sustentabilidade os seguintes: Os filósofos e as máquinas 1400-1700 (Rossi, 1989); O tao da Física (Capra, 1985); O ponto de mutação (Capra, 1986); Sabedoria incomum (Capra, 1990); A irreversível aventura do planeta Terra (Rohde, 1992).
- Os diversos campos do conhecimento que realizaram importantes mudanças paradigmáticas em período recente ou que tiveram teorias revolucionárias que apontam para paradigmas emergentes são registradas a seguir, tendo como referência as obras mais importantes que lhes dizem respeito ou aquelas existentes em língua portuguesa.
Campo da Teoria do Conhecimento:
Teoria da auto-organização
- A teoria da auto-organização (Varela, 1979; Maturana & Varela, 1993; Thompson, 1990) subverte completamente a idéia de causalidade mecânica, abrindo nova perspectiva para uma nova ontologia (Cirne-Lima, 1993), com visão alternativa sobre o problema da contingência.
De fato, esta tentativa filosófica pretende fazer frente à situação intransponível que Immanuel Kant (1724-1804) deixou na teoria do conhecimento, em termos de uma Razão unitária, autônoma e livre, que deve objetificar as coisas do mundo para poder conhecê-las em suas relações causais. A fundamentação das relações na teoria da auto-organização é feita sempre tendo em vista a recursividade entre um sistema dinâmico e seu ambiente.
Um novo método:
- Decorridos 340 anos desde que o filósofo francês René Descartes (1596-1650) publicou o seu famoso Discurso do Método (1637), um novo Método (Morin, 1977, 1980, 1986 e 1991) aparece, com a proposta de um saber conjuntivo e articulador, com a necessidade da enciclopédia, o apreender a articular pontos de vista disjuntos do saber em um ciclo ativo.
A visão deste novo paradigma parte da idéia de organização ativa como sinônimo de reorganização permanente. A raiz re física representa uma categoria fundamental e mereceria, conforme Morin, ser conceitualizada do modo mais radical, pois está em autos e óikos, pois estes últimos são reorganizadores, regeneradores e recorrentes: repetir, reorganizar, reproduzir, reciclar, retornar, rememorar, recomeçar, refletir, revolver, reusar etc. A obra (até setembro de 1994) é composta pelos livros:
- O Método I (Morin, 1977);
- O Método II (Morin, 1980);
- O Método III (Morin, 1986);
- O Método IV (Morin, 1991).
Paradigma holístico:
- O paradigma holístico afirma a inseparatividade de todas as coisas e procura eliminar o discurso e a prática dualistas. Apenas a holologia, ou seja, a obtenção ou o desenvolvimento de uma compreensão clara e de uma interpretação correta da não-dualidade, pelos meios clássicos ligados ao pensamento discursivo (Weil, 1987a:7) é passível de ser abordada, uma vez que a holopraxia requer o acesso mediante experiência individual e particular.
A bibliografia que apresenta o paradigma holístico, realizada após o clássico O fantasma da máquina (Koestler, 1969), é numerosa:
- A neurose do paraíso perdido (Weil, 1987);
- Nova linguagem holística (Weil, 1987a);
- Introdução à visão holística (Crema, 1988);
- Viver holístico (Pietroni, 1988);
- Holística: uma nova visão e abordagem do real (Weil, 1990);
- A linguagem dos deuses (Farjani, 1991);
- O novo paradigma holístico (Brandão & Crema, 1991); A arte de viver em paz (Weil, 1993).
Campo Sistêmico:
Ecologia energética (EMERGIA):
- A ecologia energética modeladora, baseando-se em conceitos cibernéticos e sistêmicos (White et al., 1992), desemboca, já na década de 70, na definição de emergia, ou seja, na quantidade de energia multiplicada por uma transformidade que se relaciona com a qualidade da energia em questão. Inicialmente ocupando-se de ecossistemas naturais, passando pelos agrossistemas, os modelos de emergia chegaram, em pouco tempo, a integrar as ações humanas e os seus imensos impactos ao meio ambiente, locais ou globais.
A abordagem energética oferece subsídios revolucionários no sentido de uma correta avaliação dos valores atribuídos a processos e recursos naturais, tarefa que a chamada economia neoclássica nunca conseguiu desempenhar a contento, nem de maneira extremamente precária. Algumas obras básicas disponíveis no Brasil são as seguintes:
- Ambiente, energía y sociedad (Odum, 1980);
- Systems ecology (Odum, 1983);
- Energy basis for man and nature (Odum & Odum, 1981);
- Ecologia (Odum, 1988).
Campo Matemático:
Caos e fractais:
- Observando a Natureza e o Cosmos pela geometria tradicional verifica-se que a simetria estrutural se dá em todo o Universo, desde as partículas elementares até as estruturas cósmicas mais complexas, como os buracos negros. Os observadores dualistas sempre opuseram à ordem a desordem, o irregular, o caos.
Ao contrário, o caos não é o lado irregular da Natureza, mas uma generalização do comportamento universal da complexidade. Os fractais (Mandelbrot, 1977) são a geometria da Natureza, a simetria através das escalas de observação.
- A tese de Mandelbrot é de que as complexidades só existem no contexto da geometria euclidiana tradicional. Como fractais, as estruturas ramificantes podem ser descritas com transparente simplicidade, com apenas algumas informações (Gleick, 1990:104).
A base informacional disponível sobre o caos e os fractais está situada, principalmente, em: The fractal geometry of nature (Mandelbrot, 1977); The science of fractal images (Peitgen & Saupe, 1988); Caos, a criação de uma nova ciência (Gleick, 1990); Clima e excepcionalismo (Monteiro, 1991).
Teoria da catástrofe:
- A teoria da catástrofe (Arnold, 1989) fornece um método universal para o estudo de transições por saltos, descontinuidades e súbitas mudanças qualitativas, que a análise newtoniana, baseada em processos suaves e contínuos, não possui capacidade de enfocar. Catástrofes são mudanças súbitas e violentas, representando respostas descontínuas de sistemas com variações suaves nas condições externas (Arnold, 1989:19).
Até o presente momento, os resultados da teoria de Ren Thom já foram aplicados em campos como o estudo dos batimentos cardíacos, ótica física e geométrica, embriologia, hidrodinâmica, geologia, psicologia experimental, linguística e às partículas elementares.
Campo Físico:
Holograma e ordem implicada:
- O físico David Bohm (1971) afirma que o holograma é um ponto de partida para uma nova descrição da realidade: a ordem implicada (1991).
A realidade convencional física (clássica) focaliza manifestações secundárias explicadas das coisas e não a sua essência ou fonte. Implicar é explicar, implícito. A implicação faz parte, igualmente, da teoria da auto-organização e da ontologia que a põe como premissa.
- O paradigma holográfico e outros paradoxos (Wilber, 1991) mostra que a organização do Universo, bem como a natureza da mente humana, pode ter sua realidade primária (implicada) como um domínio de frequências um holograma, portanto em que qualquer pedaço pode reconstituir a imagem inteira.
Campo Geológico:
Teoria da tectônica de placas:
- A nova tectônica global constitui uma explicação coerente e sistêmica da dinâmica do planeta Terra e foi a única revolução paradigmática do tipo kuhniano consciente de si mesma. Seus protagonistas sabiam o que estava acontecendo, o que levou J. Tuzo Wilson a proclamar a revolução nas geociências no Congresso Internacional de Geologia em Praga (1968).
De fato, além de a chamada tectônica de placas ser a primeira teoria a explicar o comportamento cinemático, físico e geológico da crosta terrestre como um sistema coerente e unitário, ela provocou verdadeira unificação epistemológica no campo das geociências.
- Algumas obras sobre a tectônica global: Deriva continental y tectónica de placas (Scientific American & Tuzo Wilson, 1974); The way the Earth works (Wyllie, 1976); A Terra nova geologia global (Wyllie, 1985); Geo-história a evolução global da Terra (Ozima, 1991). 8. Campo Biológico
Teoria de Gaia:
- A chamada hipótese Gaia é um novo olhar sobre o fenômeno precariamente chamado vida na Terra, com a idéia de que a Terra está viva. A primeira afirmativa nesse sentido partiu do geólogo James Hutton, em 1785, em uma palestra efetuada na Royal Society de Edimburgo.
O conceito de Gaia, ou Mãe Terra, como diziam os gregos, é na visão moderna a abreviatura da biosfera considerada como um mecanismo de regulação automática, com a capacidade de manter saudável nosso planeta, controlando o meio físico e químico.
- A grande mudança paradigmática de Gaia frente à evolução biológica clássica consiste em que, nesta última, a vida adapta-se, de maneira mais ou menos passiva, ao mundo físico; já em Gaia a evolução vital interage e literalmente molda o meio físico, entrando em cena a parte biológica responsável pelo controle planetário: os microorganismos. Os quatro principais livros que tratam sobre esta revolução paradigmática são os seguintes: Gaia (Lovelock, 1987);
Mudanças de Paradigma e Desenvolvimento Sustentado
- As eras de Gaia (Lovelock, 1988); Microcosmos (Margulis & Sagan, 1990); O despertar da Terra (Russel, 1991). 8.2 Dois novos contratos Desde que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu seu Contrato Social (1762) para regrar as relações políticas entre os seres humanos, a História continuava cega à Natureza. Mas agora os tempos históricos, tempos biológicos (Tiezzi, 1988) impõem nova situação de abordagem.
A história global entra na Natureza, a natureza global entra na História. Eis dois novos diplomas normativos necessários, o contrato natural (Serres, 1991) e o contrato animal (Morris, 1990).
- O contrato natural propõe uma nova ética que elimine o estado de guerra com a Natureza, um novo pacto, um novo acordo prévio, que devemos fazer com o inimigo objetivo do mundo humano: o mundo tal como está. Guerra de todos contra tudo (Serres, 1991:25).
Partindo do fato de que não somos, os seres humanos, uma espécie rara, porém, sem sombra de dúvida, somos uma espécie ameaçada, é possível identificar o maior crime de lesa-humanidade: o rompimento do contrato animal. A base deste contrato é que cada espécie deve limitar seu crescimento populacional o suficiente para permitir que outras formas de vida coexistam com ela (Morris, 1991:12).
O aspecto humano do contrato animal é que não há nada a ganhar na superpopulação, a não ser a miséria.
Princípios Científicos para a Sustentabilidade:
- A possibilidade da construção de uma sustentabilidade deve levar em conta os princípios extraídos dos recentes avanços nos paradigmas e teorias científicas, uma vez que a insustentabilidade atual foi resultante, em grande parte, do conhecimento superado anterior, inadequado, de convivência com o meio ambiente.
Os princípios filosófico-científicos, emergentes dos novos paradigmas e teorias, que podem tentativamente compor a base para a construção da sustentabilidade, são os seguintes: contingência; complexidade; sistêmica; recursividade; conjunção; interdisciplinaridade.
- É importante ressaltar que estes princípios, conforme anteriormente registrado, são extraídos da área da teoria do conhecimento e dos novos paradigmas científicos e, portanto, constituem parte do aparato conceitual disciplinar para uma abordagem sustentável.
Princípios éticos, sociais (por exemplo, ver Ely, 1992:199- 200) e econômicos deverão igualmente entrar na formação das novas propostas de desenvolvimento da Sociedade.
Princípio de contingência:
- O princípio de contingência refere-se à possibilidade ontológica do novo não necessário, do diferente contraditório, constituindo o contexto filosófico da teoria da auto-organização.
No campo científico, a contingência assume a forma das propriedades emergentes dos sistemas principalmente vivos que não estão previstas pelo somatório particular das partes que os compõem. A implicação está contida neste princípio, sendo contraponto à explicação mecânica.
- O princípio de complexidade atual opõe-se ao reducionismo praticado de forma generalizada pelas ciências, tendo ainda que fornecer as bases para uma Razão aberta, que reformule a evolução do fechamento racional simplificador anterior. A complexidade deve fazer frente à irracionalidade e a racionalidade, às racionalizações, incerteza e ambiguidade.
A complexidade traz embutida a necessidade de associar o objeto ao seu ambiente, de ligar o objeto ao seu observador e a desintegração do elemento simples. Para uma abordagem detalhada do paradigma da complexidade, ver Morin (1982:248-50).
Princípio de sistêmica:
- O princípio de sistêmica engloba a perspectiva cibernética, a abordagem holística quanto à totalidade, além de incluir aspectos sobre autonomia e integração. A sistêmica tem relação com a complexidade, com a recursividade e com a emergia
Princípio de recursividade:
- O princípio de recursividade baseia-se no paradigma re e está presente nas ciências, na auto-organização, no novo método, no holismo, na emergia e no caos-fractais. A recursividade põe a organização ativa como sinônimo de reorganização permanente.
Princípio de conjunção:
- O princípio de conjunção é o contraponto teórico e prático da disjunção mecânico causalista anterior, ou seja, a articulação dos campos do conhecimento, dos saberes e das abordagens, permeando todos os paradigmas científicos novos.
Princípio de interdisciplinaridade:
- O princípio de interdisciplinaridade permeia todos os novos paradigmas científicos, desde o novo método até os fractais. É sobretudo na abordagem sistêmica, na complexidade e na questão ambiental que a interdisciplinaridade possui maior relevância.
Muitos pesquisadores chegam a enfocar a interdisciplinaridade como espécie de correção para o estilhaçamento da Razão nas diversas racionalidades hoje existentes e, no mínimo, como uma tentativa de minimizar a patologia do saber (Japiassu, 1976).
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