terça-feira, 23 de agosto de 2016

Desenvolvimento, Conflitos Socioambientais, Justiça e Sustentabilidade: desafios para a transição

Desenvolvimento, Conflitos Socioambientais, Justiça 
e Sustentabilidade: desafios para a transição

Marcelo Firpo Porto
Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz
Introdução: 
Desenvolvimento “crescimentismo” e crise:
  • O atual modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil e por boa parte do planeta segue um padrão apregoado por inúmeros economistas, incluindo alguns vinculados a posições ideológicas de esquerda. 
As principais diferenças destes com os economistas neoclássicos, dentre outras, encontram-se voltadas ao grau de nacionalização ou abertura da economia; ao controle do capital privado, especialmente o internacional e o financeiro; ao papel do Estado em termos de funções e tamanho; e, last but not least, à maior ou menor relevância das políticas distributivas e sociais. 
  • Apesar dessas diferenças, podemos falar de um padrão do modelo baseado na crença de que o crescimento econômico tradicional, refletido na correspondência entre maior investimento-produção-consumo, permitiria, simultaneamente, maior número de empregos e maior qualidade de vida para uma parcela cada vez maior da população. 
O crescimento econômico tem sido amplamente utilizado como sinônimo ou condição necessária de desenvolvimento, inclusive o humano. Neste paradigma “crescimentista” de desenvolvimento, uma questão estratégica a responder é: quais são os setores da economia (ou de produção e consumo) que permitem combinações ótimas de recursos e oportunidades de negócio, além das eventuais vantagens de economias de escala para torná-los competitivos e permitirem um crescimento sustentável dentro de ciclos relativamente longos? 
  • Nesse sentido, investir em grandes cadeias produtivas voltadas à produção de alimentos, aço, automóveis, máquinas, bens de consumo diversos, assim como nas infraestruturas de energia e transporte acopladas a tais cadeias, é visto como inevitável e indispensável ao “bom” crescimento econômico. 
Podemos dizer, de forma simplificada, que, até algum tempo atrás, os grandes questionamentos desse padrão de crescimento, portanto de “desenvolvimento”, eram principalmente de natureza social e distributiva: o problema não estaria na natureza em si dos recursos e tecnologias adotadas, tampouco no modelo de ciência que o sustentaria, já que todos esses fatores expressariam a quase infinita capacidade de criação humana e dominação das forças da natureza. 
  • Para a visão crítica clássica, o conflito capital versus trabalho, relativo aos processos de produção e acumulação, era central e motor da história. Inevitavelmente, crises cíclicas ocorreriam, e sua superação, na vertente marxista, envolveria a capacidade de mobilização e organização dos trabalhadores em processos revolucionários que permitiriam a construção de estados socialistas. 
Ou então, na vertente moderada da social-democracia, tais processos seriam de natureza mais gradual e reformista, por meio de políticas redistributivas e da crescente oferta de bens e serviços públicos, os quais formariam a base do chamado Estado de Bem-estar Social (“Welfare State”) na Europa Ocidental pós Segunda Guerra Mundial. 
  • As últimas quatro décadas têm propiciado uma mudança significativa da crítica ao modelo de desenvolvimento “crescimentista”. Mesmo com o fim da Guerra Fria, após a derrocada da União Soviética, cada vez mais utilizamos a expressão crise: do modelo de produção e consumo, da economia, da ciência, crise ecológica ou mesmo civilizatória. 
Trata-se de um tema extremamente complexo, e cabe, aqui, destacar apenas alguns breves e simplificados tópicos de interesse para a saúde ambiental que podem nos ajudar, dentro dos limites deste artigo, a compreender a crise do atual modelo de desenvolvimento, bem como as possibilidades para sua transição nas próximas décadas. 
  • A visão crítica clássica que enfatizava a centralidade dos conflitos sociais de natureza distributiva, assim como as alternativas políticas de transforma- ção na construção de Estados Socialistas, vem sendo superada por visões pós-críticas. Estas incorporam a questão ecológica e os novos desafios da democracia nas sociedades contemporâneas vistas em sua crescente complexidade, seja em termos de multiculturalidade em consonância com exercício de novos direitos e cidadanias, seja em termos de produção de conflitos, vulnerabilidades, crises ou tragédias. 
Mesmo numa abordagem “marxista ecológica”, a centralidade dos conflitos atuais deixa de ser observada exclusivamente a partir das classes sociais, mas “ao redor da relação social entre homem e natureza, o meio ambiente construído, as condições gerais de produção, o tema da qualidade e quantidade da provisão de bens públicos” (Altvater, 2007). 
  • Nesta visão, ONGs e novos movimentos sociais, bem como novas práticas científicas e institucionais, teriam um papel fundamental para alavancar novos rumos para o desenvolvimento e a democracia a partir dos conflitos e crises existentes. 
A apropriação dos recursos naturais e espaços públicos para fins específicos que geram exclusão e expropriação produzem reações por parte de movimentos sociais, grupos e populações que se sentem atingidos em seus direitos fundamentais, envolvendo questões como saúde, trabalho, cultura e preservação ambiental. 
  • Portanto, os conflitos socioambientais são simultaneamente questões de justiça (Porto, 2007), e um dos desafios atuais é o de conectar os vários casos e experiências de transformação por meio de trabalhos em redes sociais solidárias em torno de novas formas de direitos, territorialidades e cidadanias.

Desenvolvimento, Conflitos Socioambientais, Justiça 
e Sustentabilidade: desafios para a transição

Conflitos socioambientais, ecologia politica:
E metabolismo social: 
  • O item anterior indica que, cada vez mais, os conflitos sociais podem ser vistos como conflitos socioambientais nas sociedades modernas. Sua emergência e intensificação decorrem de uma visão economicista restrita de desenvolvimento pautada por critérios produtivistas e consumistas, bem como por um regime energético não renovável baseado em combustíveis fósseis. 
Em decorrência desrespeita-se a vida humana e dos ecossistemas, assim como a cultura e os valores dos povos nos territórios onde os investimentos, as cadeias produtivas e o comércio se realizam a serviço de grandes corporações e do mercado globalizado. 
  • A globalização e os riscos ecológicos globais implicam uma inevitável e crescente conexão entre o local, o regional e o global. Uma importante contribuição atual para entendermos a crise ambiental vinculada ao modelo de desenvolvimento vem sendo dada pela Economia Ecológica – campo transdisciplinar oficialmente criado no final dos anos 80 e caracterizado pelo pluralismo metodológico no desenvolvimento de uma economia da sustentabilidade. 
Seu principal precursor, o economista Nicholas Georgescu-Roegen, ao integrar os processos econômicos e os processos de organização da natureza em seus fluxos de energia e materiais na produção da vida, mostrou com clareza a insustentabilidade da economia moderna. Um aspecto central reside no seu regime de energia fóssil e nos fluxos intensos de materiais e energia incompatíveis com o metabolismo ecológico e social do planeta. 
  • O resultado é a aceleração de entropias globais, ou seja, processos de desorganização dos ecossistemas e da própria vida. Sendo nosso planeta um sistema limitado, a sustentabilidade implicaria num retorno, com mais eficiência, a um regime de energia à base de radiação solar, incluindo os biocombustíveis, energia eólica e outras modalidades renováveis, além da crescente reciclabilidade e desmaterialização da economia. 
Portanto o enfrentamento da crise ambiental passaria não somente pela redução da produção dos gases de efeito estufa, mas pela transição a um novo regime energético, de produção, comércio e consumo. O espanhol Martinez Alier (2007) ilumina nosso entendimento ao analisar os conflitos socioambientais contemporâneos a partir das contradições existentes do comércio desigual e injusto entre países do atual capitalismo globalizado. 
  • Ao articular a Ecologia Política com a Economia Ecológica, tendo por base a análise do metabolismo social, Martinez Alier fornece uma importante base teórica para entendermos os conflitos socioambientais como conflitos distributivos que incluem os próprios recursos naturais, territórios e bens imateriais. 
Os conflitos seriam produtos das desigualdades, imposições e contradições decorrentes dos processos econômicos e sociais de desenvolvimento que formam ‘centros’ e ‘periferias’ mundiais e regionais. Tais conflitos, porém, tendem a se radicalizar em situações de injustiça presentes em sociedades marcadas por fortes desigualdades sociais, discriminações étnicas e assimetrias de informação e poder. 
  • Nesses casos, o tema da saúde humana e ambiental se intensifica pela vulnerabilização de populações e territórios afetados, e a gravidade dos problemas de saúde pública se apresenta como importante bandeira de luta para as populações atingidas e movimentos sociais diversos.
A (in) justiça ambiental, saúde e o caso brasileiro: 
  • O conceito de justiça ambiental está relacionado originalmente à luta contra a discriminação racial e étnica presente nos movimentos pelos direitos civis da sociedade norte-americana nos anos 70 e 80. Inicialmente, o foco foi a luta contra o chamado racismo ambiental, mas, depois, o movimento se ampliou articulando-se com a defesa pelos direitos humanos universais e incorporando outras formas de discriminação além da racial, como classe social, etnia e gênero. (Bullard, 1994; Porto 2007). 
Portanto, a justiça ambiental deve ser vista menos do ponto de vista da judicialização dos conflitos e relações sociais e mais do ponto de vista ético, político, da democracia e dos direitos humanos. Na América Latina (AL), somente nos anos 90 é que, aos poucos, a relação entre meio ambiente, saúde, direitos humanos e justiça passou a fazer parte da agenda de alguns países com a adoção do conceito de justiça ambiental. 
  • Na AL, via de regra, as situações de injustiça ambiental emergem mais intensamente em função, além da elevada desigualdade social e discriminação étnica, de sua inserção na economia internacional a partir da exploração intensiva e simultânea de recursos naturais e força de trabalho, ou seja, pelo seu papel histórico na exporta- ção de commodities rurais e metálicas. 
O Brasil, apesar de seu relativo desenvolvimento econômico, industrial e institucional, em comparação aos outros países latino-americanos, é também marcado por forte concentração de renda e poder e, portanto, de inúmeras situações de injustiça ambiental. Uma interessante característica da emergência dos movimentos por justiça ambiental em países da América Latina é, em contraposição aos movimentos inicialmente localistas e separados por etnias específicas (‘People of Color’) dos EUA, a visão mais global, que busca entender criticamente os problemas locais em sua lógica com o modelo de desenvolvimento capitalista na região.
  • Outra vertente que vem contribuindo para uma visão crítica na região foi a influência da medicina social latino-americana, que incorpora a visão dos determinantes sociais dos processos saúde-doença na análise dos problemas de saúde pública (Nunes, 1994). No contexto brasileiro, os conflitos socioambientais podem ser revelados, em boa parte, pela própria dinâmica da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), criada em 2001. 
A Rede tem permitido articular diferentes movimentos sociais, populações atingidas, pesquisadores solidários e ambientalistas, criando agendas nacionais e regionais, realizando campanhas em torno de casos concretos de injustiça ambiental, bem como elaborando propostas de políticas e demandas endereçadas ao poder público. 
  • Dentre as atividades econômicas geradoras de conflitos e temas que têm mobilizado a RBJA, destacam-se a exploração e produção de petróleo; a expansão da mineração e da siderurgia; a construção de barragens e usinas hidrelétricas; os setores econômicos que produzem e utilizam substâncias químicas extremamente perigosas, como o amianto e os POPs (Poluentes Orgânicos Persistentes); a expansão de monoculturas intensivas, como a soja e a monocultura de eucaliptos; e, last but not least, os direitos dos povos do campo e da floresta, como indígenas, quilombolas, agricultores familiares e pescadores, cujas injustiças ambientais também podem ser caracterizadas como formas de racismo ambiental (Herculano e Pacheco, 2006). 
A análise se baseou em mais de três mil documentos, que circularam na Rede desde 2002 até 2008, e da tipologia que vem sendo empregada na construção do banco temático da RBJA, um projeto de cooperação e pesquisa entre a Fiocruz e a Fase (ONG que sedia a secretaria executiva da RBJA) coordenado pelo autor deste artigo.

À guisa de conclusão:
Alguns desafios para a transição do modelo:
  • Em razão da brevidade deste artigo, é impossível aprofundar os dados de caráter geral apresentados, mas gostaria de ressaltar alguns elementos que demarcam nosso modelo de desenvolvimento e apontam necessidades de mudança. 
Podemos observar que os primeiros três tipos de conflitos estão fortemente relacionados à inserção brasileira – e em boa parte latino-americana – no mercado globalizado por meio das cadeias de produção de commodities rurais e metálicas, bem como às infraestruturas que dão suporte a elas (como estradas, usinas hidrelétricas e transposição de bacias hidrográficas como a do Rio São Francisco). 
  • As monoculturas de exportação e a expansão do parque siderúrgico são exemplares em termos de conflitos socioambientais e geração de riscos para a saúde pública. Ambas envolvem desde casos de trabalho semi-escravo, que lembram os primórdios do capitalismo do século XIX, até riscos tecnológicos que vêm sendo transferidos para países como o Brasil, como as pesadas indústrias siderúrgicas e os agrotóxicos largamente utilizados na produção rural. 
No Brasil, as intoxicações por agrotóxicos em trabalhadores e população em geral podem ser consideradas, em termos econômicos, como externalidades negativas. 
  • Os custos com tratamentos médicos e previdenciários recaem sob os ombros da sociedade como um todo através dos sistemas públicos de saúde e previdência social. Ao mesmo tempo, a concentração fundiária nas enormes propriedades rurais das monoculturas dificulta a Reforma Agrária e gera enormes impactos em ecossistemas, como a Amazônia e o cerrado, além de agravar a crise urbana. 
Portanto, uma transição agroecológica eficiente em termos de proteção ambiental, segurança alimentar e fixação com qualidade de vida de famílias agricultoras é vital para a mudança do modelo. E isso também implica bases argumentativas e mobilizações políticas que enfrentem as grandes monoculturas, a produção e o comércio de agrotóxicos. 
  • No Brasil, como em quase toda a América Latina, a migração campo-cidade e a enorme concentração urbana têm favorecido o crescimento de áreas de moradia precárias e insalubres nas cidades, o que pode ser considerado um dos maiores problemas de saúde pública. 
Estima-se que cerca de 30% da população brasileira (mais de 50 milhões) vivem em favelas no Brasil, frequentemente sem condições básicas de moradia e saneamento, com serviços de saúde e transporte precários, além dos graves problemas de violência envolvendo o comércio de drogas e o confronto com forças policiais que dificultam o exercício da cidadania e a organização política destas comunidades.
  • Tais condições aumentam a vulnerabilidade destas populações a problemas de saúde como mortalidade infantil, diarreia, tuberculose e mortes de jovens por armas de fogo, dentre outros. 
O desenvolvimento de uma ecologia urbana articulada aos problemas de saneamento, violência, transporte público, espaços recreativos, lixo, poluição atmosférica e hídrica, bem como a articulação de tais temas com os movimentos por justiça ambiental, são importantes desafios para a realidade brasileira e latino-americana. 
  • Cidades saudáveis não surgirão sem práticas democráticas e emancipatórias de promoção da saúde, e, para isso, um desafio estratégico é o pensar de novas alternativas de planejamento urbano integrado a territórios mais amplos que possibilitem formas mais sustentáveis na relação com o campo e os ecossistemas mais amplos ao redor. 
Para concluir, apontamos outros desafios de caráter mais geral e civilizatório que deverão ser enfrentados nas próximas décadas:
  • A distribuição justa e pacífica (não bélica) tanto dos benefícios do desenvolvimento econômico como também dos recursos naturais cada vez mais escassos diante do seu crescente esgotamento e consequentes disputas pelo seu controle; 
  • A redução e mitigação dos chamados riscos ecológicos globais, como a camada de ozônio, as mudanças climáticas e a poluição química transfronteiriça; 
  • A transição dos sistemas de produção e consumo que estimulam o consumismo individualista desenfreado e se baseiam num regime insustentável de energia, principalmente a energia fóssil, que acelera os processos entrópicos de desorganização da vida no planeta; 
  • A construção de novas práticas científicas e institucionais que se baseiem menos numa ciência positivista e “neutra”, com sua pretensa objetividade adquirida por “certezas quantitativas”, e mais na aceitação e explicitação dos limites, incertezas e ignorâncias do conhecimento científico. Além disso, que sejam capazes de pensar os problemas de forma sistêmica e complexa; de produzir sínteses que sintam e captem as dimensões éticas e morais relevantes da condi- ção humana que fazem parte do problema; de dialogar com outras formas de conhecimento, inclusive os tradicionais. 
  • A formação e trabalho em redes sociais solidárias que permitam o diálogo e a ação política em situações de conflito e injustiça através da interação das várias populações (em particular as mais vulneráveis), culturas e formas de conhecimento. 
  • A manutenção e aprofundamento da democracia, ou mesmo os riscos de sua ruptura, diante dos itens anteriores e dos conflitos em diversas sociedades decorrentes da crescente interação de diferentes grupos sociais, culturas e seus valores morais e espirituais promovida, por vezes violentamente, pela globalização em curso.
Referências Bibliográficas: 

ACSELRAD H, HS.; PÁDUA, J.A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004, p. 312. 
ALTVATER, E. Existe um marxismo ecológico. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas Boron, AA; Amadeo J; Gonzalez S. 2007. 
BULLARD, R. Dumping in Dixie: Race, Class and Environmental Quality. Westview Press, 1994.
FREITAS, C. M.; PORTO, M. F. S. Saúde, ambiente e sustentabilidade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006. 
HERCULANO, S. ; PACHECO, T. (Org.). Racismo Ambiental. Rio de Janeiro: Fase, 2006, p. 334. 
MARTINEZ-ALIER, J. O Ecologismo dos Pobres. São Paulo: Ed. Contexto, 2007, p. 384. 
NUNES, ED. Saúde coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Saúde e Sociedade 3 (2): 5-21, 2004. 
PORTO, MF. Uma Ecologia Política dos Riscos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz

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