Terra Urbanizada para Todos:
Reflexões sobre trechos do texto de apresentação
da página web da Secretaria Nacional de Programas Urbanos
Ana Margarida Koatz
Arquiteta e Urbanista, Assistente Técnica do Departamento de Planejamento Urbano da Secretaria Nacional de Programas Urbanos
"O modelo de urbanização brasileiro produziu nas últimas décadas cidades caracterizadas pela fragmentação do espaço e pela exclusão social e territorial. O desordenamento do crescimento periférico associado à profunda desigualdade entre áreas pobres, desprovidas de toda a urbanidade, e áreas ricas, nas quais os equipamentos urbanos e infraestruturas se concentram, aprofunda essas características, reforçando a injustiça social de nossas cidades e inviabilizando a cidade para todos. (Secretaria Nacional de Programas Urbanos em http://www.cidades.gov.br)"
A urbanização é uma realidade irreversível e tendência universal, cujas consequências não precisam ser necessariamente negativas. A cidade tradicionalmente cristaliza as vantagens da aglomeração e da economia de escala, facilitando o acesso a bens e serviços, inexistentes ou dispersos, no meio rural e ao mercado de trabalho, exercendo grande poder de atratividade.
- O que se pode desejar é que na busca da cidade, esta seja efetivamente uma cidade para todos, sendo no direito à cidade que se encontra o principal ponto de convergência entre o desenvolvimento urbano e a saúde ambiental.
No bojo do direito à cidade e à terra urbanizada, encontra-se não só o reconhecimento do direito à moradia, mas, principalmente, à moradia digna, bem construída, em local ambientalmente seguro e dotado de saneamento ambiental (água, esgoto, drenagem e recolhimento de resíduos sólidos), com pavimentação e iluminação públicas, bem como suprida dos serviços e equipamentos sociais básicos: creches, escolas, posto de saúde, áreas de esporte e lazer.
- Uma moradia bem construída é aquela que é edificada com materiais adequados, que busca um local de implantação geologicamente seguro e ecologicamente correto, longe de áreas de preservação de mananciais ou ecossistemas. É também aquela cuja implantação consegue garantir condições mínimas de salubridade, deixando áreas de iluminação e ventilação necessárias à garantia das condições de salubridade de um espaço de moradia.
Num assentamento precário, a escassez da terra bem localizada a torna cara, e, em geral, se sucumbe à tentação de uma ocupação predatória, que leva, ao extremo, o aproveitamento da terra disponível na tentativa de fazer render ao máximo o tempo, trabalho e dinheiro ali investidos, sem tomar consciência da importância dos vazios e aberturas necessários à circulação de ar e luz, elementos fundamentais da saúde.
- Há que acreditar que a possibilidade de oferecer condições de moradia dignas não é uma posição ingênua e inviável. Há que fomentar políticas de acesso à terra urbanizada e bem localizada. Há que suprir a demanda reprimida por habitação, pelo mercado e pelo governo (nos três níveis), devendo este priorizar a habitação social e, concomitantemente, oferecer assistência técnica profissional e capacitação profissional à mão de obra da autoconstrução, valorizando o saber popular empírico, mas alertando-o com relação à tentação da densificação excessiva, da ocupação até o limite do lote de terra disponível, cujas consequências são diretas no nível de insalubridade da habitação. E, finalmente, há que, até mesmo, pagar o preço de conseguir a remoção das áreas de risco, com a participação das próprias populações envolvidas.
Não permitir a ocupação irregular é função do poder público, embora muitas prefeituras não tenham os meios e o pessoal para a fiscalização, e nem sequer o próprio mapeamento de suas áreas de risco. Porém, onde for possível, as prefeituras devem investir em urbanização, infraestrutura e serviços de saúde básica e educação, que sirvam de alternativa viável à população de mais baixa renda. Os dividendos são imediatos, inclusive com a redução dos ní- veis de violência urbana.
- Há custos envolvidos, há necessidade de mudança de mentalidade (coisa difícil!) e premência de materializar estes conceitos numa política de estado, e não mais meramente uma política pública (mais uma!) de vida efêmera. E, além de planejar, há que implantar esta política, sendo a participação popular fator preponderante em sua elaboração e gestão. Pois a melhoria da saúde pública e da qualidade de vida repousam em todas e em cada uma das causas citadas.
"Grande parcela das cidades brasileiras abriga algum tipo de assentamento precário, normalmente distante, sem acesso, desprovido de infraestruturas e equipamentos mínimos. Na totalidade das grandes cidades essa é a realidade de milhares de brasileiros, entre eles os excluí- dos dos sistemas financeiros formais da habitação e do acesso à terra regularizada e urbanizada, brasileiros que acabam ocupando as chamadas áreas de risco, como encostas e locais inundáveis."
O número total de famílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, casas de fundo, ocupações de áreas públicas sob pontes, viadutos, marquises e nas beiras de rios é estimado, mas é possível afirmar que o fenômeno está presente na maior parte das cidades que compõem a rede urbana brasileira.
- "A pesquisa IBGE 2000 nos municípios revela a presença de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500.000 habitantes e também, ainda que em menor escala, nas cidades médias e pequenas. Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os assentamentos irregulares se multiplicaram em terrenos frágeis ou não passíveis de urbaniza- ção, como encostas íngremes e áreas inundáveis. São as chamadas “ocupações em áreas de risco” - frequentes cenários de tragédias em períodos chuvosos."
Trata-se talvez do aspecto mais visível de uma relação inadequada entre urbanização e saúde ambiental, que se traduz em enchentes e deslizamentos a cada estação de chuvas, numa tragédia anunciada, pois em geral só se desenvolvem ações pontuais de prevenção de risco e se trabalha mais efetivamente a partir da tragédia instalada. Segundo declara o diretor de Planejamento Urbano do Ministério das Cidades, Celso Carvalho, em entrevista à revista do IPEA,
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“O ideal seria evitar que as famílias se instalassem em áreas de risco ou inadequadas para moradia. Nas localidades com declividade forte, é natural a ocorrência de desabamentos de encosta em época de chuva. Quando as pessoas cortam a vegetação e fazem ruas para instalar a área onde pretendem morar, a probabilidade de acidentes aumenta.
O risco é ainda maior quando se trata de ocupação irregular ou favela, porque as construções são mais frágeis e não há coleta de lixo nem esgoto, fatores que agravam a situa- ção. (...)A ocupação não regulada do solo é predominante nas cidades brasileiras. (...)A falta de controle está institucionalizada no país, e uma ação mais severa da prefeitura pode agravar o problema social: Se a prefeitura olhar a legalidade, expulsa os pobres, o pobre não cabe no mercado formal.”
- Segundo Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, relatora especial da Organização das Nações Unidas para assuntos de moradia e ex-secretária nacional de Programas Urbanos, a solução passa através de planejamento do uso e ocupação do solo, com políticas efetivas de habitação social que assegurem à popula- ção o direito à moradia, conforme está previsto na Constituição e no Estatuto da Cidade
"Por outro lado, às ocupações irregulares soma-se, em muitas cidades, o problema da subutilização do espaço e dos equipamentos, expressa na grande quantidade de imóveis vazios, inclusive residenciais. São imóveis ociosos ou subutilizados, instalados em trechos urbanizados inteiros – geralmente, áreas centrais e dotadas de infraestrutura, uma massa enorme de imóeis reforçando a exclusão e a criação de guetos, tanto de pobres que não dispõem de meios para se deslocar, quanto de ricos que temem os espaços públicos –, realidade que contribui para a violência e para a impossibilidade de surgimento da cidadania."
Fica claro que o ordenamento e o planejamento territorial urbano têm de ser retomados com seriedade, de modo a evitar que a situação de caos se instale definitivamente, com efeitos nocivos sobre a qualidade de vida nas cidades e consequentes prejuízos para a saúde ambienta
"O Estatuto das Cidades, que regulamenta os artigos da Constituição Federal referentes à Política Urbana, constitui um dos maiores avanços da legislação urbanística brasileira"
O Estatuto, Lei Federal 10.257/2001, fruto de 13 anos de luta da sociedade pela reforma urbana, é o instrumento legal que fornece instrumentos para combater a ocupação desordenada, direcionar e priorizar a ocupação das áreas infraestruturadas, conter a especulação imobiliária e direcionar o aproveitamento das melhorias feitas pelo investimento público em prol de todos, e não apenas de uma minoria, com transferência de recursos da União e ações de mobilização e capacitação.
"Ele apoia os municípios na execução da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, com base em princípios que estimulam processos participativos de gestão territorial e ampliam o acesso à terra urbanizada e regularizada, principalmente beneficiando grupos sociais tradicionalmente excluídos."
Dentre seus vários objetivos estão: promover o reconhecimento de maneira integrada dos direitos sociais e constitucionais de moradia e preservação ambiental, qualidade de vida humana e preservação de recursos naturais, além da busca pela remoção dos obstáculos da legislação federal fundiária, cartorária, urbanística e ambiental, de modo que as ações planejadas não se percam no cipoal da burocracia instalada, e que a função social da cidade e da propriedade sejam asseguradas sobre o direito absoluto de propriedade e de construção, democratizando o acesso à cidade e à sua gestão participativa.
- A efetiva implementação do Estatuto da Cidade, dos Planos Diretores e dos Conselhos Locais das Cidades se refletirá numa cidade mais justa, ordenada, sustentável e acessível para todos, com reflexos imediatos na qualidade de vida e melhoria da saúde ambiental
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