Desenvolvimento e Sustentabilidade Socioambiental no Campo,
na Cidade e na Floresta
Raquel Maria Rigotto
Ana Cláudia de Araújo Teixeira
- Desenvolvimento e Sustentabilidade Socioambiental: talvez a primeira questão que ocorra a algumas pessoas é “e o que nós, da saúde, temos a ver com isto?!”. É que a gente se acostumou tanto a reduzir a discussão da saúde à doença...
É a força daquele modelo que a Reforma Sanitária quer superar – centrado no indivíduo doente, a ser tratado com tecnologias caras e sofisticadas, de preferência internado num hospital... Mas saúde é bem mais que ausência de doença! É qualidade de vida, é direito!
- Como construímos na 8ª Conferência Nacional de Saúde, ela resulta de educação, moradia, trabalho, terra, alimenta- ção, liberdade... Ela é expressão da articulação de um conjunto de políticas públicas, de relações sociais e políticas intra e internacionais, do modo de produção e consumo, da natureza. Ou seja, a saúde registra e indica à medida que o modelo de desenvolvimento vigente é capaz de viabilizar a vida, com qualidade e com equidade.
A atual crise financeira articula-se à crise ambiental – que se escancara já há algumas décadas, mas se acirra e aprofunda agora – e à crise social, sublinhando o questionamento: esta forma de organizar a vida no planeta é sustentável? Expandir ilimitadamente a produção e o consumo é a ideia-força do desenvolvimento. Estamos aqui para produzir e consumir.
- Nossa tarefa, na condição de humanos, é explorar os “recursos” da natureza e acumular a partir da exploração do trabalho humano. Conceber o ar, a terra, a água e toda a biodiversidade inerente à fauna e à flora como “recursos naturais” a serem explorados de maneira indiscriminada, fundamentalmente para gerar lucros e riquezas que se concentram nas mãos de alguns empreendedores.
Reduzir toda a dignidade do trabalho humano à condição de mercadoria que produz mercadorias para gerar lucro. Bem-vindas a ciência e a tecnologia que ajudam nessa missão. As demais questões são secundárias. Você concorda? Na sociedade ocidental, esta ideia surge com força no século XIV e se amplia enormemente com a ascensão da burguesia, instituindo novos valores, normas e atitudes que, hoje, têm a força de uma crença religiosa em nossa sociedade.
- Um dos muitos problemas apontados pelos críticos a este ideário é que o acesso às riquezas do planeta é desigual: terra, água, minerais, são exemplos já bem conhecidos por todos. Então, só alguns têm “explorado estes recursos”.
E também apontam os críticos que, se alguns exploram o trabalho humano e acumulam a partir dele, outros humanos (em muito maior número!) são explorados. Ou seja, a ideologia do desenvolvimento não trata de um processo que traga benefícios a todos e todas. Pelo contrário, ele beneficia a alguns e prejudica a muitos. Mas nem sempre isto é facilmente visível.
- Há uma intensa produção simbólica, veiculada pela mídia e também pelas instituições de ensino e outros processos formadores de valores, de que o desenvolvimento “é tudo de bom”, “é melhorar, é progredir”.
Nas entrelinhas dos projetos do FMI, do BID, dos grandes blocos econômicos está a promessa de que países como o Brasil “ainda vão chegar lá”: é só seguir a receita do bolo da industrialização, do centramento na dimensão econômica da vida social, e vamos ser um país desenvolvido como os da Europa ou América do Norte. É uma promessa irrealizável: precisamos desconstruir esta ilusão.
- Os argumentos são muitos e variados, mencionamos apenas dois. O primeiro é bem físico: a Terra não tem como alimentar a generalização de processos de produção e consumo como os dos Estados Unidos para todo o mundo: não tem a água necessária, os combustíveis e outras fontes de energia necessárias; não aguenta receber os resíduos, efluentes e emissões gerados sem degradar-se fortemente, a ponto de inviabilizar a pró- pria vida humana.
Não seria isto o que estão nos gritando as mudanças do clima e/ou as perspectivas de escassez de água? O segundo argumento é político-econômico: o “desenvolvimento” dos países centrais é o outro lado da moeda do “subdesenvolvimento” em outros países.
- Nas relações Norte-Sul do planeta, a fatia que cabe ao Brasil e a outros países da América Latina, por exemplo, é bem clara hoje: disponibilizar nossa reserva de natureza (terra, água, energia, biodiversidade) e a força de trabalho a ser “incluída” para produzir grandes quantidades de bens de baixo valor no mercado internacional – as commodities como a soja, o etanol, a celulose, o ferro-aço, o camarão, flores etc.
A partir delas, os países centrais seguem na cadeia produtiva executando as etapas que agregam mais valor, degradam e contaminam menos o ambiente e demandam um trabalho mais saudável e digno. Ou seja, garantem o seu padrão de desenvolvimento, enquanto inviabilizam o nosso...
- De fato, nos países do hemisfério norte, a sociedade pressiona por uma Reforma Ecológica e gera forças (legais, políticas, culturais, econômicas) que acabam por empurrar, especialmente para o hemisfério sul, esses processos produtivos mais degradantes do ambiente e mais consumidores do patrimônio natural.
Ao mesmo tempo que tendem a ser expulsos de lá para cá, eles estarão sendo atraí- dos por políticas governamentais de desenvolvimento que incluem isenções fiscais, facilidades de infraestrutura e financiamento, oferta de terra de preço baixo, água abundante, mão de obra barata etc: é tudo o que eles precisam para se manterem competitivos no mercado mundial.
- E ainda serão bem acolhidos por diversos setores da sociedade, como aqueles que estão sendo capturados simbolicamente pela ideia fictícia da inclusão social via emprego formal. Ou mesmo pelos grupos mais vulneráveis que, sacados de suas comunidades e modos tradicionais de vida, expropriados da terra e do acesso aos recursos naturais, terminam como migrantes nas periferias dos centros urbanos, sofridos o bastante para aceitar, e até desejar, este emprego, por mais precário que seja.
Movidos pela necessidade intrínseca de expansão permanente do capital, os processos de produção e consumo tendem a promover profundas transformações nos territórios em que se inserem, produzindo conflitos socioambientais, além da utilização de matérias e energias às vezes não renováveis; a degradação do ambiente, como o desmatamento e a desertificação; a contaminação da água, do solo, do ar, da biota e dos alimentos por substâncias químicas, como os agrotóxicos, ou riscos tecnológicos de natureza física; a mudança de padrões culturais, valores, hábitos, além da alteração de paisagens de importante significado cultural para as populações tradicionais, entre outros.
- Excluídas dos processos de decisão, as comunidades são colocadas diante da “alternativa infernal”: escolher entre a falta de opções de trabalho e geração de renda, e o emprego nesses novos empreendimentos. Os governos locais tornam-se reféns da chantagem de localização e comprometem recursos públicos em incentivos, isenções e facilidades de infraestrutura, além do compromisso tácito de não molestar os investidores com exigências legais e fiscalizações.
A legitimação simbólica dos empreendimentos pela geração de emprego e renda e a falta de informações claras, fidedignas, e democraticamente debatidas – inclusive nos processos de licenciamento ambiental – ocultam seus impactos sociais e ambientais e dificultam a mobilização e organização dos grupos sociais atingidos (Como a saúde vem sendo abordada nesses processos? Em que medida as audiências públicas significam participação efetiva da população atingida no processo de tomada de decisão?).
- Muitas vezes, o que resta para o lugar, ao fim de alguns anos de exploração por esses empreendimentos “fugazes”, é a degradação do socio-ambiente, a mutilação e a doença dos trabalhadores – a “herança maldita” –, reforçando a injustiça ambiental. Instalados em países como os irmãos da América Latina, esses empreendimentos vão ser protegidos pelo discurso e prática de flexibilizar as exigências ambientais ou a legislação trabalhista; pela minimização do Estado, produzida pelo neoliberalismo, que repercute na fragilidade das instituições e das políticas públicas – “quando tem o fiscal, não tem a diária ou o aparelho ou o laboratório...”.
A desinformação e a falta de transparência também protegem esse modelo de desenvolvimento. O SUS, por exemplo, quando não dá conta de diagnosticar, notificar e vigiar os agravos à saúde, decorrentes dos processos produtivos ou das alterações ambientais, está ajudando a ocultar as contradições impostas. E, claro, nossas práticas como cidadãos consumidores também pesam nesse processo. Ao pagar pelos produtos, bens e serviços desse modelo, estamos de alguma forma validando-o.
- Nosso desejo mais profundo, e até inconsciente, tem sido capturado para o consumismo por sofisticadas técnicas de comunicação de massa, cujo preço também já está embutido no que compramos. É por este desejo que muitas vezes nos mantemos atados a um emprego que não nos traz felicidade nem saúde, suportando, às vezes, até humilhações: seria o desejo de consumo o substituto pós-moderno do grilhão atado à perna dos escravos?
Um dos pilares para a operação do consumismo no imaginário coletivo é a ideia de que às mercadorias se associam não apenas valores de uso, mas também simbólicos: aquilo que consumo expressa o que sou, cada um vale o que tem... E aqui já está a fronteira com os valores éticos, com as metanarrativas, com as possibilidades de significação de nossa existência, com o individualismo. É onde este sistema se enraíza em nosso ser e passa a se reproduzir de forma quase despercebida.
- É o momento em que a ecologia profunda vem nos convidar para um mergulho interior e uma tomada de consciência: qual o verdadeiro significado de nossa existência humana? Qual o sentido de nossa passagem por este maravilhoso planeta Terra? Toda a hegemonia desse modelo de desenvolvimento tem contribuído para o agravamento das injustiças e acirrado os conflitos socioambientais na cidade, no campo, nas florestas, na zona costeira, impactando sobremaneira a cultura e o modo de vida das comunidades.
Nesse cenário, há que se destacar o lançamento, em janeiro de 2007, pela Presidência da República, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De acordo com a Casa Civil, “o PAC é um conjunto de medidas que visam: incentivar o investimento privado; aumentar o investimento público em infraestrutura; e remover obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento”.
- Este programa é que tem investido 503,9 bilhões de reais em: rodovias, ferrovias, portos, termelétricas e hidrelétricas, usinas nucleares, produção de agrocombustíveis, expansão de refinarias, siderúrgicas e beneficiadoras do minério de alumínio, expansão do turismo de grande escala em áreas naturais etc.
Desenvolvimento e Sustentabilidade Socioambiental no Campo,
na Cidade e na Floresta
No momento de lançamento do PAC, o Conselho Nacional de Saúde discutiu o tema e elaborou Moção que aponta algumas consequências destas transformações para a saúde:
"”1. Comprometimento da segurança alimentar de comunidades ribeirinhas, indígenas e de agricultores familiares, por modificar as formas de acesso à água, à terra e a alimentos – a pesca artesanal, o extrativismo; o que pode implicar em subnutrição, desnutrição, elevação da mortalidade infantil, aumento da vulnerabilidade a doenças infecto-contagiosas.
"2. Perda de biodiversidade não só por seu valor estético e ético intrínseco, mas também por sua importância para o sustento econômico das comunidades; para o preparo, por exemplo, de medicamentos que beneficiam toda a humanidade."
"3. Alteração no padrão de distribuição de doenças infecto-contagiosas, influindo na expansão, emergência ou reemergência de patologias como a malária, doença de chagas, dengue, febre amarela, assim como afecções gastrointestinais e dermatológicas associadas à degradação da qualidade da água."
"4. A proliferação de múltiplos riscos ambientais de natureza física, química ou biológica, decorrentes da introdução de novos processos produtivos, poluindo o solo, a água, o ar e os alimentos. Tais riscos se difundem para além do entorno dos empreendimentos, seja pelas vias e dutos que transportam produtos perigosos; seja pela contaminação por energia eletromagnética em toda a extensão das linhas de transmissão elétrica, por exemplo; seja pelo descarte inadequado de resíduos perigosos. Eles são causa de acidentes e numerosas doenças ocupacionais e ambientais de graves implicações para a saúde humana, inclusive a elevação da incidência de cânceres, e acometem de forma iníqua particularmente os grupos sociais mais vulneráveis."
"5. Desestabilização de práticas sociais e laços de sociabilidade em decorrência de deslocamentos compulsórios de população e introdução de novos padrões e hábitos culturais, os quais interferem diretamente em dimensões como doenças sexualmente transmissíveis e Aids, consumo de álcool e drogas ilícitas, doenças mentais e sofrimento psíquico, gravidez indesejada e precoce, padrões alimentares e de moradia etc.”
A reestruturação da produção no campo, no contexto do capitalismo avançado, vem sendo denominada modernização agrícola. Trata-se de um processo complexo em que se articulam grandes proprietários de terra, o capital financeiro e a indústria de insumos – máquinas, equipamentos, sementes, fertilizantes e agrotóxicos.
- Estes agentes econômicos conformam novos arranjos territoriais produtivos, conectados internacionalmente e com pouca relação com os lugares, onde possam beneficiar-se de uma série de vantagens competitivas e de contextos de fragilidade das políticas de Estado no campo do trabalho, do ambiente e da saúde, que lhes poupem custos, e ainda contextos de fragilidade das organizações e movimentos sociais de defesa da vida e da cidadania em suas várias dimensões.
Estes novos arranjos territoriais produtivos têm entre suas características:
- Concentração de terras, muitas vezes com processos violentos de expulsão de comunidades tradicionais. Comprometimento da segurança alimentar, por modificar as formas de acesso à água, à terra e a alimentos.
- Mudanças nas práticas sociais e laços de vida comunitária pelos deslocamentos compulsórios de população e introdução de novos hábitos culturais. Mudanças na dinâmica das cidades vizinhas, formação de favelas rurais.
- Uso intensivo de novas tecnologias de comunicação, mecanização e insumos – como fertilizantes e agrotóxicos, para viabilizar a produção, ampliando a escala e a velocidade de interferência na Natureza.
- Proletarização das relações de trabalho, transformando pequenos proprietários rurais – que muitas vezes perderam suas terras –, em empregados dos novos empreendimentos.
- Relações e condições de trabalho precarizadas: baixa remuneração, descumprimento da legislação trabalhista, intensificação do trabalho, exposição a situações de risco à saúde.
- Estabelecimento de “parcerias” com pequenos produtores locais, submetendo-os ao pacote tecnológico e padrões de qualidade do investidor.
- Redução da biodiversidade e dos serviços ambientais. Profunda alteração da paisagem. Degradação do solo pela monocultura e risco de desertificação.
- Elevado consumo de água, contaminação de águas superficiais e subterrâneas por fertilizantes e agrotóxicos.
- Contaminação do ar por agrotóxicos, incluindo as pulverizações aéreas que continuam acontecendo.
- Exposição das comunidades do entorno das fazendas à contaminação pelos agrotóxicos utilizados de forma intensiva
Acumulam-se as evidências de que não é possível tornar este modelo de desenvolvimento sustentá- vel. Esta foi uma ideia conciliadora, surgida no final dos anos 1970, que tentou compatibilizar os mesmos valores e práticas do desenvolvimento com a incorporação de algumas questões sociais e ambientais.
- Houve avanços sim, mas as crises não puderam ser evitadas, e estão aí. Por isso, para promover saúde hoje, é preciso ajudar a construir alternativas a esse ideário e a esse modelo de desenvolvimento. É exatamente este o debate que abrigamos na expressão Sustentabilidade Socioambiental, cujo conteúdo está em construção.
Uma de suas premissas fundantes é a Justiça, que se baseia no envolvimento de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem, classe ou renda nos processos de tomada de decisão sobre políticas de desenvolvimento, leis e regulações ambientais. Para isto, é necessária a ado- ção de mecanismos que garantam que nenhum grupo social suporte uma parcela desproporcional das cargas desses processos de desenvolvimento.
- Dialeticamente, num esforço de resistência e de criação de alternativas, diversas entidades, movimentos, instituições, grupos, pessoas – seja na cidade, no campo, nas florestas ou no litoral - vêm defendendo seus territórios, lutando pela preservação do seu modo de vida frente aos interesses de mercado dos grandes empreendedores, produzindo e difundindo valores e culturas baseados em um modo de produção e usufruto sustentável do patrimônio natural, nas potencialidades locais, no atendimento das necessidades sociais, no resgate da dignidade e da poesia do trabalho humano etc.
São formas cooperativas de produção, associações populares, alternativas ao desenvolvimento que vão se articulando em redes locais e internacionais, como as de turismo comunitário ou de economia solidária urbana, “produzindo para viver, em caminhos não capitalistas”.
- O caráter planetário, global e sistêmico da atual crise econômica, social e ambiental, decorrente do modo de produção e consumo capitalista, nos impulsiona a construir novas maneiras de ser e de existir em nossa relação com a natureza e em nossas relações interpessoais que primem pela ética, pela solidariedade entre as nações e pela emancipação dos povos.
E, nessa perspectiva, nos desafia a construir possibilidades e caminhos rumo à sustentabilidade socioambiental que tenham como premissa o respeito à vida e à diversidade sociocultural e regional das populações
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